domingo, 20 de dezembro de 2015

Gore Vidal sobre os "botões quentes"

           No artigo, "Sexo é Política", Gore Vidal expõe sua teoria dos botões quentes, amparando-se nos fatos políticos da  vida estadunidense dos anos 1970. Ao expor seus argumentos, Vidal demonstra que historicamente políticos e religiosos mobilizam constantemente versões moralistas da sexualidade para obterem dividendos políticos. No Brasil, a bancada evangélica utilizou muito bem os botões quentes no ano de 2015, para a infelicidade dos brasileiros. Abaixo segue o trecho em que Vidal expões a teoria dos botões quentes, o artigo encontra-se na coletânea já esgotada, De fato e ficção (Cia das letras).  O trecho começa na página 230.                                                                                                                                                                                                  
                                                                   xxx                                                                                 

            "Por sorte, nada que é humano é constante. Hoje em dia os casamentos civis são mais numerosos do que os casamentos religiosos; o divórcio é uma coisa corriqueira; a prevenção da gravidez é universalmente praticada, enquanto o aborto é legal para quem tem dinheiro. Mas nossos governantes cederam terreno nestas questões sexuais-sociais com grande relutância, e não é nenhum segredo que há uma boa dose de frustração nas salas de reunião do país.
                Umas das razões é que os trabalhadores, hoje, são menos obedientes do que costumavam ser.  Quando despedidos, podem se apoiar na previdência social — uma invenção do Demônio. Além disso, o fato de a maior parte dos trabalhos que os homens fazem as mulheres também poderem fazer — e fazem — põe em perigo a velha ordem patriarcal. Uma mulher capaz de sustentar-se e de sustentar seu filho é uma ameaça ao casamento, e o casamento é a instituição central através da qual os proprietários do mundo controlam as pessoas que realizam o trabalho. O homossexualismo também representa uma ameaça a seu antigo domínio, porque homens que não têm mulher (231) nem filhos com os quais se preocupar não são facilmente domináveis quanto os que têm.
                Em qualquer momento dado na vida de uma sociedade, há determinados botões ´quentes´ que um político pode apertar para obter uma resposta previsivelmente ´quente´. Há uma década, se você perguntasse ao presidente Nixon o que ele pretendia fazer com a questão do desemprego, provavelmente ele responderia. ´A maconha é apenas uma etapa para coisas piores´.  Falar contra o pecado é uma boa política — e não se preocupem com os non sequiturs. Na realidade, é positivamente não-americano — chega a ser comunista — discutir um problema real como o desemprego ou quem está roubando todo o dinheiro do Pentágono.
                Para distrair o eleitorado, o político americano inescrupuloso tratará de perseguir os grupos que o Velho ou o Novo Testamento não vêem com bons olhos. Os descendentes de Ham são permanentemente malvistos pelos americanos brancos. Para azar do usuário do botão ´quente´, é considerado de mau gosto perseguir abertamente os negros. Mas sempre restam as expressões codificadas. Todo mundo sabe que ´encostado na previdência social´ quer dizer negro, assim como ´lei e ordem´. A primeira porque a maioria das pessoas sustentadas pela segurança social são negros (na verdade, são brancos); a segunda porque existe a crença generalizada de que a maior parte dos crimes urbanos são cometidos por negros contra brancos ( na realidade, são cometidos por negros desempregados contra outros negros). Mas os negros pobres não são as únicas vítimas. Muitos cristãos e alguns judeus não gostam muito de gente branca pobre, partindo do velho princípio puritano de se que você é bom, Deus irá enriquecê-lo. Essa é uma linha evangélico-cristã bem conhecida, recentemente alardeada pelo renascido milionário Walter Hoving.  Ao se ver na situação de não ter 2 milhões e 400 mil dólares do total que necessitava para comprar as lojas Bonwit Teller, de Nova York, Mr. Hoving ´abriu-se para o Senhor´, que imediatamente apareceu (231/232) com o dinheiro. ´Foi totalmente milagre´. Agora sabemos por que os ricos estão sempre conosco. Deus gosta deles.
                Os judeus são permanentemente malvistos pelos cristãos americanos porque são responsáveis para todo o sempre pelo assassinato de Jesus, não importa o que possam dizer aqueles idólatras católicos romanos, entupidos de vinho, no Segundo Concílio Vaticano. É verdade que agora, com a criação de Israel, os cristãos têm uma admiração relutante pelos judeus como opressores. Mesmo assim, na terra dos nascidos e renascidos, uma das questões de fé é que os meios de comunicação de massa nos Estados Unidos estão nas mãos dos judeus, e que o objetivo destes é liquidar com o povo de Deus. Consequentemente, ´meios de comunicação de massa ´é a expressão codificada deste ano para ´abaixo os judeus´, enquanto ´Salvem as Nossas Crianças´ significa ´abaixo as bichas´.
                Mas política, como sexo, frequentemente aceita estranhas alianças. Este ano os cristãos militantes estão lado a lado com os judeus militantes, apertando o tipo de botões quentes que imaginam que irão fortalecer o domínio do país através da solidificação da família. Aparentemente, a família só pode ser fortalecida se as mulheres não tiverem direitos iguais aos dos homens, nem no mercado de trabalho nem relativamente a seus próprios corpos (Não abortarás). É por isso que a derrota da Emenda dos Direitos Iguais à Constituição tem grande importância simbólica.
                Os Salvadores da Família também desejam leis fortes, cujo objetivo ostensivo é restringir a pornografia, mas que na realidade objetivam recusar a liberdade da palavra àqueles de quem não gostam."

sábado, 24 de outubro de 2015

De tudo um pouco, interessa a historiadores e amantes da literatura. Carta de Voltaire ao Marquês D´Argenson, escrita em 1740:

           "...As infâmias de tantos homens de letras não impedem meu amor à literatura. Sou como os verdadeiros carolas que continuam a amar a religião, apesar dos crimes dos hipócritas...
            Tenho uma ideia curiosa na cabeça, a de que somente as pessoas que escreveram tragédias conseguiram injetar algum interesse em nossa história seca e bárbara. É preciso, numa história, como numa peça de teatro, exposição, trama e desenlace. 
            Mais uma ideia. Sempre se fez história dos reis, nunca a das nações. Parece que, durante mil e quatrocentos anos, tivemos na Gália apenas reis, ministros e generais. Nossos costumes, nossas leis, nossos hábitos, nosso espírito, nada são?..."

terça-feira, 20 de outubro de 2015

      Usando como metáfora o trabalho extenuante dos prisioneiros soviéticos que ao pisotearem a neve e a terra criavam as estradas na URSS, Chalámov conclui

"Dos que abrem caminho, todos, até o menor, o mais fraco, em algum momento tem de pisotear um pedaço de terra virgem coberta de neve e não a pegada alheia. QUEM VAI DE TRATOR E A CAVALO NÃO SÃO OS ESCRITORES, MAS SIM OS LEITORES." Contos de Kolimá, Varlam Chalámov
"Sabem que a honestidade é como a chita; há de todo o preço, desde meia pataca." Machado de Assis

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Pérolas de Juan Carlos Onetti no livro, Junta-Cadáveres


"...mas cada posição rebelde tem também seus artigos de fé, seus preconceitos, sua burguesia..."
"...Eu só quero coisas, novidades concretas, absurdos que me façam diferente; quero que me olhem, quero ser o escândalo, quero que lhes seja impossível me confundirem com eles mesmos, ter-me e pensar-me como um igual. Não me interessa um passado, o amanhã é sempre território alheio. Tem que ser agora, cada vez agora e já, já. Só gosto das palavras quando se convertem em coisas;.."

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um pouco de sobriedade sobre o fenômeno religioso

"O que propõe uma fé nova é perseguido, na espera de que chegue a ser, por sua vez, perseguidor: as verdades começam por um conflito com a polícia e terminam por apoiar-se nela; pois todo absurdo pelo qual se sofreu degenera em legalidade, como todo martírio desemboca nos parágrafos de um código, na insipidez do calendário ou na nomenclatura das ruas. Neste mundo, até o próprio céu se torna autoridade; e houve períodos que só viveram para ele, Idades Médias mais pródigas em guerras que as épocas mais dissolutas, cruzadas bestiais, falsamente revestidas de sublimidade, ante as quais as invasões dos Hunos parecem travessuras de hordas decadentes." Emil Cioran, Breviário de Decomposição. p. 82

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A quem serve aquele que carrega o ódio nos olhos

           No conto, Cambrino, Aleksandr Ivánovitch Kuprin relata em uma passagem muito pertinente como aquele que na multidão dos que estão encolerizados, pode ser usado para os fins mais odientos e irracionais. O conto trata de uma cervejaria e de seu ilustre músico judeu, Sachka, que foi perseguido de várias formas e em diferentes momentos, inclusive nos pogroms ocorridos durante o czarismo. Principalmente o de 1907, é bom enfatizar que Kuprin foi jornalista, e realmente conheceu um músico de características semelhantes.

xxx

            "Aquando dos pogroms, Sachka andava livremente pelas ruas, com a sua cara engraçada de macaco, bem judia. Não buliam com ele. Tinha uma bravura inabalável de espírito, o destemor do temor, que protege até os fracos melhor do que quaisquer Brownings. Mas uma vez, quando, apertado à parede de um prédio, se desviou de uma multidão, que fluía qual furacão, um pedreiro, de camisa vermelha e avental branco, brandiu o escopro sobre ele e pôs-se a rugir:
              - Ju-deu!Batei neste judeu! Arrancai o seu san-n-gue!
              Mas alguém lhe segurou o braço por trás.
              - Pára, diabo. Este é o Sachka. Deixa-o em paz, seu filho de uma rameira imunda...
              - O pedreiro deteve-se. Naquele absurdo instante de loucura e embriaguez estava disposto a matar quem quer que fosse - o pai, a irmã, o padre, e até o deus mais ortodoxo -, mas também estava disposto a obedecer a qualquer vontade firme.
              Deu um sorriso largo, como um idiota, cuspiu e limpou o nariz com as costas de uma mão. De repente, porém, os seus olhos caíram sobre um cãozinho branco e agitado, que, a tremer, se esfregava na parede, ao pé Sachka. Agachando-se agilmente, ele o agarrou pelas pernas traseiras, levantou-o alto, bateu-lhe com a cabeça na laje da calçada e saiu a correr. Sachka olhou para ele  em silêncio. O homem corria inclinado para a frente, com os braços estendidos, sem gorro, de boca aberta e com os olhos redondos e brancos de loucura.
              Os miolos de Biélotchka, respingaram as botas de Sachka. Ele limpou a mancha com um lenço." Aleksandr Krupin, Cambrino, In: O bracelete de granadas. pp. 103-104

       Destaquei duas passagens curtas feitas por José Honório Rodrigues, as quais foram retiradas do seu ensaio sobre a Revolução de 1930, mas que ao retratarem a política brasileira, parecem atemporais.

         "E isto está sintetizado na famosa frase de Antônio Carlos: ´Façamos a revolução agora, antes que o povo a faça´, o que lembra a de D. João VI ao dizer a D. Pedro:´Ponha a coroa na sua cabeça, antes que algum aventureiro o faça´, posição sempre assumida pelo conservadorismo brasileiro, que teme mais que tudo o seu próprio povo".  O movimento revolucionário de 1930, a situação econômica, social e política, In: História Viva. pág. 88.

         "O povo brasileiro é historicamente um povo derrotado pela minoria dominante". O movimento revolucionário de 1930, a situação econômica, social e política, In: História Viva. pág. 88.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A felicidade

"...Ah, então temos mais um sábio? Ora, ora. Achega-te... Não saberias em que está a felicidade?
          O sábio - e ele era um verdadeiro sábio - respondeu:
- A felicidade está no esplendor do pensamento humano.
O soberano  teve um estremecimento de sobrancelhas e entro a gritar, colérico:
- Ora! O pensamento humano! Que é o pensamento humano?
O sábio - pois ele era um verdadeiro sábio - apenas sorriu, compadecido.
Então, o imperador ordenou que o atirassem à masmorra, onde havia escuridão eterna e não penetrava  nenhum som de fora. Um ano depois, conduziram a ele o cativo, que ficara cego e surdo e mal se aguentava em pé.
- Então? Ainda és feliz agora?
O sábio respondeu tranquilamente:
- Sim sou feliz. Na prisão, fui imperador, dono de tesouros, amei, tive mesa farta, passei fome, e tudo isso me foi dado pelo meu pensamento.
- Mas que é o pensamento ?! - exclamou o monarca com impaciência - Pois fica a saber que, daqui a cinco minutos, eu te enforcarei e cuspirei no teu rosto maldito! Então, ainda te consolará o teu pensamento? Onde estarão, então, os pensamentos, que desperdiçaste pelo mundo?
O sábio respondeu-lhe tranquilamente, pois era um verdadeiro sábio:
- Parvo! O pensamento é imortal."

                                                  Aleksandr Ivánovitch Kuprin, "A felicidade". O bracelete de granadas. pp. 37-38.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

       Diálogo entre Díaz Grey, e o incorruptível Euclides Barthé, no qual se negocia a aprovação de uma concessão/"terceirização" de um porto municipal. Em troca, os vereadores conservadores aprovariam a legalização de um prostíbulo. Obviamente trata-se de uma peça ficcional, escrita por um uruguaio.
"Sem precisar olhar, Diáz Grey via a pequena boca rosada, saliente e incorruptível.
- Ele me disse que não se tratava de concessão do porto. Apenas do serviço dos carregadores.
- Nunca - bufou Barthé; sorria no martírio. - Dá lucro. Vai ser um desserviço à comunidade. Talvez esteja desorganizado, mas dá lucro, e pertence ao povo. E, mesmo que não fosse assim, os serviços públicos devem ser administrados pela comunidade, socializados.
- Está certo. Vou dizer pro Arcelo
...
- Bom, estou com pressa. Estão me esperando no consultório e tenho duas visitas na Colônia. Eu me comprometi com o Arcelo a transmitir a proposta ao senhor. Os conservadores querem o seu voto para a concessão dos carregadores. Se o senhor votar a favor, eles se comprometem a aprovar o projeto do prostíbulo. Entendido?
...
- Entendido? - repetiu Díaz Grey. - E tem mais. Eles se dispõem a favor do prostíbulo, antes, quando o senhor indicar, em troca da sua palavra de que mais adiante irá votar a concessão dos carregadores..."
Juan Carlos Onetti. Junta-cadáveres. 

O nosso "eterno" presente. Palavras de Sílvio Romero.


"Na sua ingênua ignorância, as massas, por outro lado, procuram sempre uma cabeça de turco, uma espécie de bode expiatório, a quem culpam de todas as suas desgraças.
Cada período histórico tem, neste sentido, suas vítimas prediletas.
....
É um fato positivo, claro, evidentíssimo, por todos reconhecido e proclamado, que as três classes que têm mais de perto dirigido a vida mental e pública do povo brasileiro - OS POLÍTICOS, OS JORNALISTAS E OS LITERATOS, levaram-na a um tal grau de confusão, pessimismo e desânimo, que nem eles mesmos tomam mais pé no meio dos desatinos que acumularam.
...
O câmbio, a hiperprodução do café, as especulações dos bancos estrangeiros, a queda da Monarquia, o militarismo, regímen presidencial, os despotismos oligárquicos dos estados, os gastos supérfluos dos governos, os desfalques nas repartições públicas, a pluralidade de magistraturas, os impostos interestaduais, a falsidade das eleições, os defeituosos programas e métodos do ensino público, a falta de confiança em o novo regímen, a revolta da Armada, a do Rio Grande, a de Canudos... todas essas coisas e outras muitas, têm sido invocadas como causas de nossos males
....
Bolsa do café ou monopólio das vendas pelo estado, criação de bancos de crédito agrícola, supressão dos impostos interestaduais, unificação da magistratura, reforma do ensino, reforma da Constituição Federal (aqui variam imensamente as opiniões acerca das bases a propor), restauração da monarquia e ATÉ A DITADURA MILITAR, RECLAMADA EM ALTAS VOZES DAS COLUNAS DE VÁRIOS JORNAIS E ATÉ DA TRIBUNA DO CONGRESSO FEDERAL... todas estas coisas têm sido simultânea ou sucessivamente invocadas como antídoto à enfermidade que nos devora.
Houve até político, literato, jornalista, tido na conta de grande sabedor, que, com todo o desembaraço, nos aconselhou a renúncia da independência e a submissão ao protetorado dos Estados Unidos..
TÃO PROFUNDA É A INCAPACIDADE DESSES LEVIANOS DIRETORES DA OPINIÃO BRASILEIRA!"
O Brasil na primeira década do século XX [1910-1911], Sílvio Romero, pp.106-107.

UM LUGAR-COMUM INVERTIDO




          Se há uma certeza que podemos deduzir das discussões e troca de ofensas em relação a política atual é que elas bem se encaixam na expressão proferida por Bazárov, o niilista de Pais e Filhos, do grande escritor russo Turguêniev.
" - Não existem brigas por mesquinharias para o homem que não quiser dar importância a elas.
- Hm... isso que você disse é um lugar-comum invertido.
- Como? O que você entende por essa expressão?
- É o seguinte: dizer, por exemplo, que a instrução é perniciosa constitui um lugar-comum invertido. Parece mais sofisticado, mas no fundo é a mesma coisa..." Ivan Turgueniêv,Pais e Filhos. p.194.

            O importante comunista italiano, Antonio Gramsci, numa pequena nota dos Cadernos do Cárcere, destacou a passagem de Bazárov justamente para exemplificar o simplismo dos debates políticos na Itália de sua época.
"... Para muitos, ser ´original´ significa apenas inverter os lugares-comuns dominantes numa certa época: para muitos, este exercício é o máximo da elegância e do esnobismo intelectual e moral. Mas o lugar-comum invertido permanece sempre um lugar-comum, uma banalidade. O lugar-comum invertido talvez seja ainda mais banal do que o simples lugar-comum. O bohémien é mais filisteu que o comerciante interiorano. Daí aquele sentimento de tédio que advém da frequência de certos círculos que se acreditam de exceção, que se apresentam como uma aristocracia distanciada da vida ordinária. O democrata é maçante, mas muito mais o é o autoproclamado reacionário que exalta o carrasco e, quem sabe as fogueiras..." Antônio Gramsci, Cadernos do Cárcere, vol.4. p. 141
Como se vê, não importa a época, ou o local, o lugar-comum invertido continua dominando as discussões.

domingo, 21 de junho de 2015

Emília Viotti sobre o otimismo de alguns intelectuais europeus


        "Quando ouço Michelle Perrot, uma das historiadoras de vanguarda da França, dizer numa entrevista que a sociedade pós-moderna é uma sociedade em que as possibilidades de expressividade individual se multiplicaram, que o impacto dos sistema político e os modelos culturais têm sido exagerados e que afinal de contas as pessoas ainda têm sua vida privada, que suas faculdades críticas são cada vez mais desenvolvidas porque uma maior número de pessoas são educadas, eu me pergunto se de fato essa observação se aplica às camadas populares tanto nos países periféricos quanto no centro. Mas quando Perrot afirma que a sociedade pós-moderna é uma sociedade em que as pessoas têm um respeito muito maior pelas outras, eu me pergunto em que mundo ela tem vivido. Racismo, torturas, massacres de lideranças, guerrilhas, esquadrão da morte, problemas de sobrevivência que afetam o dia a dia de homens e mulheres das periferias, a violência do cotidiano, a manipulação da mídia, esse e tantos outros problemas que são o dia a dia de milhares de pessoas nas periferias do mundo não parecem ter entrado no universo de Michelle Perrot e de muitos intelectuais de vanguarda dos países desenvolvidos. Visto da periferia, o narcisismo celebratório e as formas de militância dessa nova vanguarda europeia que ignora o que se passa nos confins de suas ex-colônias parecem suspeitos, e isso me leva a indagar da validade de categorias interpretativas nascidas de uma experiência tão diversa e a perguntar até que ponto elas são úteis para entender a nossa realidade. Com isso não quero dizer que se deva simplesmente descartá-las, mas sim, que é necessário manter uma postura crítica em relação a elas." Emília Viotti da Costa, "A dialética invertida " (ensaio que dá título a coletânea), pp. 25-26

domingo, 7 de junho de 2015

O proselitismo religioso prospera graças a nossa emergente teocracia parlamentar

Câmara aprova aumento de isenção tributária a igrejas

Ed Ferreira - 14.mai.2015/Folhapress
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), evangélico da Assembleia de Deus
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), evangélico da Assembleia de Deus
59 mil85792
Ouvir o texto
PUBLICIDADE
Enquanto a equipe econômica da presidente Dilma Rousseff pedia aval do Congresso ao pacote fiscal, uma isenção tributária a igrejas foi incluída na surdina em uma MP (medida provisória) aprovada no fim de maio.
O benefício pode garantir a anulação de autuações fiscais a igrejas que extrapolam R$ 300 milhões. Segundo a Folha apurou, foi incorporado por intermédio do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que é evangélico.
O artigo foi incluído na MP 668, que tratava originalmente do aumento de impostos sobre produtos importados. Para vigorar, precisa ainda passar pela sanção de Dilma.
Esse "jabuti" –nome dado a temas estranhos inseridos em MPs– aumenta a isenção fiscal de profissionais da fé, ao livrar da cobrança de impostos as chamadas "comissões" que líderes religiosos ganham por arrebanhar fieis ou recolher mais dízimos.
A medida beneficia sobretudo as evangélicas neopentecostais, vertente em que o pagamento de comissões a pastores é mais comum.
A Constituição garante imunidade tributária a templos. Já os profissionais que neles trabalham e que recebem salário, como pastores, pagam contribuição previdenciária e Imposto de Renda sobre a remuneração.
Mas não há tributação sobre ajudas de custo –moradia, transporte e formação educacional, entre outros itens, desde que esse dinheiro seja para subsistência do profissional.
Muitos dos casos de sonegação religiosa são de pastores que recebem, por exemplo, um salário mínimo e, por fora, "comissões", a título de "ajuda de custo", que chegam à casa dos R$ 100 mil. Valores sempre vinculados ao desempenho do profissional em angariar fieis.
As "comissões", no entender da fiscalização, não configuram ajuda para subsistência; por isso, religiosos passaram a ser atuados.
O jabuti colocado na MP amplia o conceito de ajuda de custo ao dizer que as condições descritas na lei atual são "exemplificativas" e não "taxativas". Ou seja, o dinheiro não precisa ser exclusivamente para subsistência e pode ser vinculado ao desempenho do pastor.
O texto também deixa claro que valores pagos aos religiosos como "ajuda de custo", ainda que em "montantes diferenciados", não constituem remuneração.
Cunha, que era da Igreja Sara Nossa Terra e hoje pertence à Assembleia de Deus, afirmou que o artigo não cria uma regra nova. "Apenas esclarece a regra antiga, porque do jeito que estava, dava desculpa para lavrar auto de infração contra as igrejas.''
Segundo a Folha apurou, uma das principais beneficiárias da medida seria a Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário R.R. Soares, multada em cerca de R$ 60 milhões em 2014.
Membros da bancada evangélica dizem que não há modificação na lei, que já prevê imunidades, e que o artigo foi acordado com o governo, com o conhecimento de Dilma.
Os pastores Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, participaram da articulação com o vice-presidente Michel Temer (PMDB) sobre a inclusão do artigo.
A Receita Federal não quis se manifestar.
OUTRO LADO
As igrejas e seus aliados no Congresso Nacional afirmam que a emenda aprovada, que pode garantir a anulação de autuações fiscais a igrejas, não traz nenhum benefício novo, apenas regulariza e deixa mais clara a legislação hoje vigente sobre o tema, evitando autuações da Receita Federal, hoje na ordem dos milhões.
Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que acolheu o pedido das igrejas para incluir a emenda em votação de uma medida provisória do ajuste fiscal, diz que "não se cria uma regra nova, apenas esclarece regra antiga porque, do jeito que estava se fazendo, estava dando desculpa para lavrar auto de infração contra as igrejas''.
O presidente da Igreja Sara Nossa Terra, bispo Robson Rodovalho, vai na mesma linha de Cunha.
"Foi uma iniciativa muito importante porque trouxe à luz uma zona cinzenta que havia na tributação", afirmou o bispo.
"As igrejas têm assegurada sua imunidade tributária pela Constituição, mas faltava uma regulamentação, o que agora foi suprido com a medida", acrescentou.
Procurada, a Igreja Internacional da Graça de Deus não se manifestou até a conclusão desta edição.
Folha não conseguiu localizar o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, para comentar o assunto nesta sexta-feira (5). 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

      Pelo bem da diplomacia parlamentar brasileira e da teocracia evangélica brasileira.





xxx
Na Folha de São Paulo

Viagem oficial de cúpula do Congresso prevê turismo
Isaac Harari/Divulgação
Eduardo Cunha no Museu do Holocausto, em Jerusalém
Eduardo Cunha no Museu do Holocausto, em Jerusalém
RANIER BRAGON
GABRIELA GUERREIRO
DE BRASÍLIA
DANIELA KRESCH
DE JERUSALÉM

04/06/2015  02h00
Mais opções
PUBLICIDADE
A viagem oficial de 20 congressistas brasileiros ao exterior, encabeçada pelos presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), inclui pelo menos oito mulheres dos parlamentares, roteiro turístico por Israel e Paris, além de uma sessão do balé "Lago dos Cisnes", no teatro Bolshoi, em Moscou.

O objetivo oficial principal da viagem é a participação dos deputados e senadores em uma reunião parlamentar dos BRICs (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), na segunda-feira (8), na capital russa.

Parte da comitiva começou a viagem na noite de segunda (1º). Eduardo Cunha levou a mulher, Cláudia Cruz, e chefia uma delegação de 13 deputados federais, além de assessores e do ex-candidato à Presidência Pastor Everaldo (PSC), segundo roteiro da viagem elaborado pela Câmara.

A primeira parada do peemedebista foi em Israel, onde foi recebido com honras de chefe de Estado e se reuniu com o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu.

Ele também esteve no Knesset, o Parlamento israelense, e foi citado pelo presidente da Casa, Yuli Edelstein, como uma espécie de sucessor do ex-chanceler Osvaldo Aranha, que presidiu a sessão oficial da ONU que selou a Partilha da Palestina, abrindo caminho para a criação do Estado de Israel, em 1947.

A comitiva é formada, basicamente, por aliados do presidente da Câmara, como os líderes das bancadas do PMDB, Leonardo Picciani (RJ), do DEM, Mendonça Filho (PE), do PTB, Jovair Arantes (GO), do PR, Maurício Quintela Lessa (AL), do PSC, André Moura (SE), do PPS, Rubens Bueno (SP), além do líder da oposição, Bruno Araújo (PSDB-PE).

Todos se hospedam no hotel Waldorf Astoria, o mais luxuoso de Jerusalém, com diárias entre US$ 500 e US$ 1.200. "Quem trouxe a esposa, como eu, está pagando por sua conta. Teve gente que veio totalmente por conta própria, que sequer foi pago pela Câmara", disse Cunha.

"Tinha mais gente que queria vir pagando e eu que segurei porque dificilmente conseguiria explicar [à imprensa]. Para ser menos criticado, eu segurei. Senão tinha vindo o dobro de pessoas, tamanha a disputa e a relevância desta viagem. O Brasil não pode se fechar dentro de sua política externa apenas em parceiros da América do Sul de coincidência ideológica", acrescentou.

Na sexta e sábado não há eventos oficiais. O roteiro prévio elaborado pela Câmara prevê que a comitiva irá visitar o Mar da Galileia, Nazaré, Jerusalém e Belém, palco de alguns dos principais pontos do roteiro turístico cristão.

A partida para Moscou ocorre na noite do sábado. Na capital russa, os parlamentares se encontram com representantes do parlamento local no domingo. À noite, o roteiro da Câmara informa que, como cortesia dos russos, serão oferecidos 26 ingressos no Teatro Bolshoi para que os brasileiros assistam ao clássico balé "Lago dos Cisnes", deTchaikovski.

Na segunda será realizado a conferência parlamentar dos BRICs. A volta ao Brasil está prevista para terça (9).

Questionada por dois dias seguidos, a Câmara disse não ter condições até o momento de dizer o custo da viagem, afirmando que parte da comitiva viajou a convite, ou seja, com custos reduzidos para os cofres brasileiros. Também não soube dizer o motivo da ida de Pastor Everaldo, que não é deputado, nem deu explicações sobre a parte turística.

Sobre as mulheres, a afirmação é a de que cada parlamentar irá arcar com os custos relativos às suas cônjuges. A Folha não conseguiu falar com o Pastor Everaldo.

A comitiva do Senado só irá para a Rússia. O presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), também vai levar a mulher na viagem. Antes de seguir para o país, Renan vai fazer escala em Paris, na companhia de Verônica Calheiros. O Senado afirma que ele bancará do próprio bolso o trecho da viagem a Paris. A passagem do Brasil para a Rússia é paga pelo Senado por se tratar de viagem oficial. Outros cinco senadores vão integrar a comitiva.

terça-feira, 31 de março de 2015

             John Reed ficou mundialmente conhecido pelo livro, "Dez dias que abalaram o mundo". Mas o jornalista, formado em Harvard, passou por uma escola prática antes de ir para a Rússia, ou seja, a cobertura de várias greves no interior dos Estados Unidos. No livro, "Eu vi um novo mundo nascer", ele relata em muitos artigos a luta dos trabalhadores de várias categorias em greve. Num desses artigos, " Guerra em Patterson", encontramos um relato impressionante, já no primeiro parágrafo ele nos mostra como a justiça, a imprensa e a polícia estão enredadas em um só objetivo. Não que hoje as coisas tenham mudado, mas que qualquer movimento grevista sempre encontrará estes três obstáculos.
xxx
"Há guerra em Paterson, New Jersey. Uma guerra peculiar, pois toda a violência é obra de apenas uma das partes - os donos das fábricas têxteis. A polícia que os serve golpeia homens e mulheres indefesos e atropela a cavalo aqueles que respeitam a lei. Seus mercenários contratados e seus detetives armados atiram em pessoas inocentes e as matam. Seus jornais em Paterson, o Press e o Call, publicam apelos incendiários de incitação ao crime, defendendo a violência contra os líderes da greve. Seu instrumento, o juiz municipal Carroll, impõe duras sentenças para os pacíficos grevistas que a polícia logo trata de capturar. Controlam completamente a polícia, a imprensa e a justiça." Artigo publicado em junho de 1913, Guerra em Paterson, pág. 41
"Devo encontrar a mim mesmo de novo. Alguns homens parecem encontrar seu destino desde cedo, crescendo naturalmente e com poucas mudanças em direção ao que virão a ser. Mas eu não tenho idéia do que serei ou farei daqui um mês. Toda vez que tentei ser algo, fracassei; foi somente ao vogar com o vento que me encontrei, e que mergulhei alegremente em um novo papel. Descobri que só me sinto feliz ao trabalhar intensamente em algo de que gosto. Nunca me detive por muito tempo em algo que não me agradasse; e agora nem poderia fazê-lo, ainda que quisesse; por outro lado, há bem poucas coisas que não me dão prazer, nem que seja apenas a novidade da experiência. Amo as pessoas - exceto os esnobes de barriga cheia - e me interesso por todas as coisas novas, velhas e belas que são criadas. Amo a beleza, o acaso e a mudança, não mais tanto no mundo exterior; porém muito dentro de minha mente. Suponho que sempre serei um romântico." Quase Trinta, John Reed.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Soneto de Gregório de Matos

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me a fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que ando só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo mar de enganos
Ser louco c´os demais, que ser sisudo.

[Retirado do Volume 3 da coleção, "Gregório de Matos, poemas atribuídos, Códice Asensio-Cunha", Autêntica, pág. 23.]

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O sistema eleitoral nunca convenceu o grande Tragtenberg, e ele estava correto.
xxx
A "doença" eleitoral

Aproxima-se a data das eleições. Não há candidato a cargo eleitoral que não se diga defensor dos trabalhadores. Aí se pergunta: como é que os trabalhadores brasileiros estão desempregados numa grande parte, outros vivendo de biscates, outros obrigados a aceitar trabalho ganhando a metade do que ganharam antes, se aparentemente ele têm tantos "defensores"?
Nenhuma candidato diz que é contra os trabalhadores, que fará conchavos como os patrões para levar o trabalhador "na conversa", dizendo ser seu "representante". Nenhum diz que está aceitando o apoio econômico de empreiteiras de construção civil, empresas particulares de todo tipo que oferecem "doações" em dinheiro ou espécie (carros para a campanha), gasolina e outros "apetrechos" . Tem cidadão comprando voto à custa de oferecer camisas para escolas de samba, bonés. Outros oferecem, além de dinheiro, sacos de cimento para o trabalhador concluir a construção de sua casa-embrião, como sucede em Lages (SC). O processo eleitoral está se transformando no maior "mercadão" do país....

Maurício Tragtenberg, Notícias Populares, 3/10/1982

"Taca-le pau" Tragtenberg
"....A ilusão do peão é que haja governo de peão. Mesmo aquele que foi peão e hoje ingressa em partido político - seja PDT ou PT -, se eleito, deixará a fábrica, frequentará o Parlamento, terá que vestir-se de terno, colete e gravata e, às vezes, usar suspensórios. Com os anos ele esqueceu que foi peão. Numa nova eleição ele lembra de novo que fora peão, aí põe boné, camiseta e vai pedir votos em porta de fábrica. Porque o maior problema para aquele que foi eleito pela primeira vez é ser reeleito. Assim é que começam as carreiras políticas. Vai começar a falar "enrolado", deixar de ser o "ponta firme" na Cipa ou fora dela, para se transformar em "representante do povo" com guarda-costas (segurança), que só fala com peão em hora marcada e distribui cartão de "representante do povo" aos amigos. A defesa do trabalhador reside nele e só nele, na consciência que ele tiver e que ele tem que se organizar a partir do local de trabalho para lutar pelo que é seu, por seus direitos. A auto-organização pelas comissões de fábrica ou bairro é o caminho; abrir mão disso, esperando que alguém, no Parlamento ou ocupando o governo do estado, lute e se lembre dele, é mera ilusão.
O mais urgente para o trabalhador é ter salário digno, moradia digna, educação para ele e seus filhos, atenção médica. E isso ele só conseguirá se confiar na sua auto-organização a partir do local de trabalho, juntando-se a outras categorias de trabalhadores na luta comum. O que o trabalhador precisa se convencer é que não pode ser escada de carreiristas que queiram subir na vida trepados em seu lombo. Sejam essas carreiras as de operários, advogados, médicos, engenheiros, professores ou o diabo a quatro."
Maurício Tragtenberg, Notícias populares, 14/11/1982
"- A inocência pessoal é um resquício da Idade Média, é alquimia. Tolstói declarou que não havia culpados sobre a Terra. Mas nós, tchekistas, propusemos uma tese mais elevada: não existem inocentes sobre a Terra, nem inimputáveis. Culpado é aquele contra o qual foi redigido um mandado, e podem-se redigir mandados contra qualquer um. Todo ser humano tem direito a um mandado. Inclusive aquele que redigiu mandados contra os outros a vida inteira. O mouro cumpriu sua missão, o mouro pode partir." Katzenellebogen, agente da KGB, personagem de "Vida e Destino", Vassili Grossman, pág. 661.
ANO 1987,
"...
Se existe partido político, vertical, ´que faz política´, inevitavelmente faz conchavos, inevitavelmente a grande massa de trabalhadores não participa de suas decisões. Isso leva obrigatoriamente a uma degenerescência burocrática da direção partidária. Imagine se o PT tivesse o poder de Estado. Nem se fale disso, o dano seria muito pior.
Na realidade o que pode ser instrumento de defesa do trabalhador é sua auto-organização a partir da fábrica, dos hospitais, da fazenda, de seu local de trabalho. Só assim poderá ele controlar sua luta. Quando deixa a direção da luta nas mãos da burocracia sindical ou burocradcia do partido político, o trabalhador está perdido. Vira ´vaca de presépio´ esperando que a ´direção´ lute por ele, quando a chamada ´direção´ luta por si, pela ocupação dos cargos burocráticos no aparelho de Estado. Veja-se que ´aparelho de Estado´ não é só o Poder Executivo, é o Poder Legislativo também. Por tudo isso, nada ele tem a esperar da Constituinte e muito tem a esperar de suas forças internas." Maurício Tragtenberg. Notícias Populares, 15/2/1987

domingo, 25 de janeiro de 2015

Algumas observações sobre a amizade, por Vassili Grossman


"...
      A amizade de intelecto, contemplativa, filosófica, normalmente exige unidade de pontos de vista, mas essa semelhança pode não ser universal. Às vezes a amizade se manifesta na discussão, na dessemelhança dos amigos.
     Se os amigos são semelhantes em tudo, se um é o reflexo do outro, então a discussão com o amigo vira uma discussão consigo mesmo.
    O amigo é aquele que justifica as fraquezas, os defeitos e até os vícios que você tem, e que confirma a sua razão, seu talento e seu mérito.
      O amigo é aquele que, por amor, revela a você suas próprias fraquezas, defeitos e vícios.
     Assim, a amizade tem fundamento na semelhança, mas se manifesta nas diferenças, contradições, dessemelhanças. Uma pessoa na amizade tenta, de forma egoísta, receber aquilo que não tem. Outra pessoa tenta generosamente dar aquilo que possui.
...
     A verdadeira amizade não depende de o seu amigo estar no trono ou de, derrubado trono, ter ido parar na prisão. A verdadeira amizade se refere às características internas da alma e é indiferente à glória e à força exterior.
   A amizade tem formas variadas, conserva-se de maneiras diversas, mas um fundamento da amizade é inabalável: a fé na constância do amigo, na fidelidade do amigo. E por isso a amizade é especialmente maravilhosa onde o homem serve o sábado. Lá, onde o amigo e a amizade foram imolados em nome de interesses superiores, o homem declarado inimigo dos ideais superiores, que perdeu todos os seus amigos, acredita que não vai perder um único amigo." Vida e Destino, Vassili Grossman, págs. 382-383

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

             Parte de um diálogo entre prisioneiros de um campo de concentração russo, durante a Segunda Guerra Mundial, deixo claro que se trata de uma peça ficcional, mas escrita por alguém que passou um tempo naqueles maravilhosos locais. No campo, encontravam-se criminosos comuns e prisioneiros políticos da época dos expurgos promovidos pelo companheiro Stálin.
"---- Sabe o que eu pensei? Não tenho inveja de quem está livre. Tenho inveja dos que estão nos campos de concentração alemães. Como é bom! Você se senta e sabe que aquele que está batendo em você é um fascista. Nosso destino é mais terrível, mais difícil: SÃO OS NOSSOS, OS NOSSOS, OS NOSSOS E OS NOSSOS." Vida e destino, Vassili Grossman. Pág. 196
Obs.: os trechos em caixa alta são por minha conta.
               Daqui da minha estância de repouso, Barra do Garças, estava relutante em postar o trecho que vai abaixo, não pelo potencial explosivo do mesmo, pois acho bem brando. Mas, devido ao momento, a suscetibilidade de alguns está por um fio. Como sou um iconoclasta, e os anos não abrandaram esta minha característica, pelo contrário, eles o reforçaram, segue o trecho de Aldous Huxley....

"... Um dos argumentos típicos em favor da imortalidade platônica e cristã é este: se não houvesse uma vida futura, ou de todo modo nenhuma crença numa vida futura, os homens estariam justificados em se comportar como animais e, estando justificados, sem demora começariam a seguir todos o conselho de Horácio e do Pregador para que não fizessem nada exceto comer até estourar, encher a cara e copular. Mesmo um homem da inteligência de Dostoiévski afirma de maneira oracular que ´todas as coisas seriam permitidas´caso não houvesse nada semelhante à imortalidade. Esses moralistas parecem esquecer que existem muitos seres humanos que simplesmente não querem passar suas vidas comendo, bebendo e fazendo festa ou, de modo alternativo, como heróis russos, estuprando, assassinando e torturando moralmente seus amigos. O tédio mortal da vida horaciana e o desprazer nauseabundo da vida dostoievskiana seriam mais do que suficientes, com sobrevivência ou sem sobrevivência, para me manter de qualquer maneira (nesses assuntos uma pessoa só pode falar por si mesma) inabalável no caminho estreito do dever doméstico e do trabalho intelectual. Porque o caminho estreito conta com uma perspectiva incomparavelmente mais favorável do que a trajetória da luxúria; realizados, os deveres domésticos são uma fonte de felicidade, e o trabalho intelectual é recompensado pelo mais intensos deleites. Não é a esperança do céu que me impede de mergulhar naquilo que é tecnicamente conhecido como uma vida de prazeres; é simplesmente o meu temperamento. Acontece que eu considero a vida de prazeres chata e dolorosa. E eu a consideraria chata e dolorosa mesmo se ficasse provado para mim de forma irrefutável que o meu destino era ser extinto ou, pior, sobreviver sob a forma de uma sombra soltando guinchos e algaravias - como uma das ´cabeças fracas´, na expressiva formulação de Homero. Nekuôn amenêna karêna - as cabeças fracas dos mortos. As pessoas que já compareceram a sessões espiritualistas irão concordar que a descrição é dolorosamente precisa." Guinchos e algaravias em "Música na noite & outros ensaios", págs. 85-86.

Esses infantes rebeldes

         Aos moralistas preocupados com os infantes rebeldes e deseducados, segue um trechinho com alguns séculos

"...Vê-se claramente que, mal a criança abandona as fraldas, levanta a mão dando mostras de querer se vingar de quem, a seu parecer, lhe ofende e quase a primeira palavra articulada que fala é chamar de puta a ama ou a sua mãe." Berganza em " O Colóquio dos Cachorros", Miguel de Cervantes.

Outro trechinho para a galerinha ciosa em apontar o dedo e exortar a conduta correta...

"...O que eu fiz não foi impor uma lei, mas prometer que morderia a minha língua quando murmurasse. Agora as coisas não seguem mais o rigor de antigamente: hoje se faz uma lei e amanhã se rompe com ela, e talvez, seja conveniente ser assim. Hoje, alguém promete livrar-se dos seus vícios e, rapidamente, cai em outros maiores. Uma coisa é admirar a disciplina e outra é segui-la e, com efeito, do dizer ao fazer há um bom percorrer. Que o diabo se morda, porque eu não quero me morder nem fazer finezas atrás de um tapete, onde não sou visto por ninguém que possa admirar minha honrada determinação." Berganza em "O Colóquio dos Cachorros", Miguel de Cervantes.

domingo, 4 de janeiro de 2015

A mesma mentalidade de sempre

              O livro, “Três mulheres de três pppês”, de Paulo Emílio Sales Gomes é uma preciosidade, pouco conhecido, não é desses recomendados na mídia, não sei se nas faculdades de Letras o mesmo é recomendado. A verdade é que o conheci através de um artigo de Roberto Schwarz, no livro, “As ideias fora do lugar”. Obviamente Schwarz destaca a qualidade da construção textual, seus aspectos formais, chegando ao final do texto a afirmar tratar-se da melhor prosa produzida desde Guimarães Rosa.
                “Três mulheres de três pppês” é uma construção narrativa magistral, entretanto gostaria de destacar os trechos onde ele faz uma crônica da mentalidade paulista no período entre 1930 e 1970. Os sonhos de uma classe média endinheirada, seus delírios de arrogarem o destino do país; a defesa de uma pureza moral que não resiste uma análise da sua vida hodierna; e o racismo velado que se mostra bem vestido em trajes de progresso econômico.
                Destaco um trecho, um pouco longo, em que vemos a junção de todos estes aspectos presentes na mentalidade paulista, onde o marido compreende as razões de sua esposa, Hermengarda, em odiar seu texto, “Louvor à dama paulista”, por recordar-lhe uma situação de extrema humilhação.


xxx

               
                “Hermengarda conta admiravelmente bem a dolorida lembrança da meninice em Campinas. Foi durante a Revolução Constitucionalista. Políticos e militares importantes tinham ido às escolas campineiras fazer discursos e lançar a campanha do ouro para a vitória. Até crianças foram mobilizadas para recolher de casa em casa moedas e alianças a fim de que São Paulo pudesse pagar os aviões e canhões que deveriam assegurar a invencibilidade das nossas tropas. Hermengarda foi especialmente – maliciosamente – encarregada pela professora de visitar um velho telegrafista italiano, seu vizinho. O neto era seu companheiro preferido nos brinquedos da calçada com as outras crianças do bairro. Os adultos os chamavam de namoradinhos. O velho recebeu a menina afetuosamente e riu muito quando ouviu o pedido. Dirigindo-se a um seu amigo presente, disse que era tarde demais, São Paulo já estava frito e enfarinato. O que as professoras deviam fazer era obrigar as crianças a estudar ao invés de encherem suas cabecinhas ocas com bobagens de políticos e militares delirantes com suas revoluções absurdas, condenadas ao fracasso. Hermengarda achou esquisita a opinião do avô de seu amiguinho mas desempenhou conscienciosamente sua missão. Na escola, seu relatório era o mais esperado e começou a falar no silêncio de uma sala apinhada. A notícia de que o velho recusara trocar as alianças de viúvo pelas patrióticas argolinhas de zinco foi recebida por um murmúrio desaprovador que se transformou em alarido indignado quando ela, na mais total inocência, transmitiu o recado de que São Paulo estava frito e enfarinato. Sentiu a pobre menina que as vaias eram também para ela, mas não entendia por quê. Severa, perguntou-lhe a professora o que pretendia fazer de agora em diante, mas a pequenina Hermengarda ficou muda, sem entender. A intrépida mestra voltou à carga, queria saber se a menina voltaria a pôr os pés na casa do telegrafista. Procurando atenuar o clima de hostilidade, Hermengarda afirmou que faria o que a professora mandasse. Esta riu sem simpatia e insistiu, queria saber se a menina pretendia ainda continuar brincando com seu “namoradinho”. Houve um rumor na sala como se a vaia estivesse prestes a recomeçar. A pequenina acusada teve vontade de chorar diante da inesperada pergunta e foi sufocando os soluços que respondeu afirmativamente, vermelha como uma romã. A vaia foi terrível mas a diretora impôs silêncio e a professora pôde fazer um exaltado discurso de acusação contra toda a família do velho telegrafista. Eram ditatoriais conhecidos, nomeados para polpudos empregos pelo interventor da Ditadura em São Paulo, o Coronel Manuel Rabelo, “o amigo dos mendigos”, frisou sarcasticamente. Esses “mendigos” eram flagelados nortistas ou estrangeiros que o grande coração da família paulista recebera. E agora cuspiam no prato estendido como esmola o escarro da traição, aboletados em postos de responsabilidade, um na coletoria, outro na prefeitura, um terceiro na portaria do Paço Municipal sem falar no irmão mais velho que fazia café na polícia, o que explicava a impunidade de todos. O pior era o telegrafista que além de estrangeiro, ditatorial e anarquista, passava as noites ouvindo a rádio do Rio de Janeiro e os dias espalhando pela cidade os boatos do inimigo.

                A Sentinela Campineira divulgou com destaque a assembleia da escola, transcrevendo as principais passagens dos discursos, inclusive as palavras da menina com a informação de que São Paulo estava frito.  A família de minha futura esposa guardou o número desse jornal que Hermengarda, já mocinha, muitas vezes releu chorando. O único pormenor que o repórter omitia foi a última resposta de Hermengarda ao encerrar-se a reunião. Pressionada pela diretora a dizer lealmente diante de todos o que faria de agora em diante, a menina, exausta, limitou-se a declarar que pretendia sim continuar brincando com o menino. As colegas deram-lhe as costas e no dia seguinte a professora pediu aos pais que a tirassem da escola. Apesar de assustados com a prisão do velho telegrafista e do cafeteiro da polícia, os pais de Hermengarda permitiram que as crianças continuassem a se ver, mas no quintal para não sofrerem vexames por parte das velhotas mais exaltadas que caçavam vítimas para atormentar. Já em meados de setembro, as crianças puderam voltar a jogar amarelinha na calçada: a Força Pública Mineira se aproximava de Campinas e as velhotas nas igrejas implorando a paz a qualquer preço.” Três mulheres de três pppês”, Paulo Emílio Sales Gomes. São Paulo: Cosac y Naify, 2007. Páginas 62-64.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Dilemas da classe média paulista em meados do século XX

             O esplêndido livro, "Três mulheres de três pppês", de Paulo Emílio Sales Gomes faz um retrato cruel da visão de mundo da classe média alta paulista. Para alguns, pode parecer ultrapassado se o usarmos como referência para compreender a elite paulista atual, mas uma leitura atenta pode concluir pela atualidade do retrato feito por Paulo Emílio Sales Gomes.

xxx

"Trabalhar o dia inteiro para aumentar o patrimônio. Uns dois filhos. Alguma aventura que se oferecesse seria acolhida, algo ocasional, sem perigo de continuidade. Em suma, meus sonhos juvenis de suprema elegância, poder e cultura, tinham se reduzido a um nível bem paulista. Nesse quadro amável, esboçado pela imaginação, antegozava os serões dedicados a leituras militares e políticas, minha especialidade amadorística. Também poderia escrever um pouco, resquício amortecido de outra antiga veleidade." Marido de [H] Ermengarda. Editora Cosac y Naify, pág. 40.

[Os dilemas de um liberal conservador nos idos de 1960...]
"...Sou um liberal conservador, respeito a tradição alheia mas em matéria de família sou subversivo e não suporto a minha. Seria capaz de entregar a Ela a metade do que tenho só para evitar que eles ficassem sabendo do desquite e se divertissem com isso. E olhe que essa metade era uma fortuna depois da subida em flecha das ações da Petrobras que comprei tremendo de medo pois corria que era coisa de comunista. E vá se confiar nos jornais!..." Polydoro. pág. 112