domingo, 4 de janeiro de 2015

A mesma mentalidade de sempre

              O livro, “Três mulheres de três pppês”, de Paulo Emílio Sales Gomes é uma preciosidade, pouco conhecido, não é desses recomendados na mídia, não sei se nas faculdades de Letras o mesmo é recomendado. A verdade é que o conheci através de um artigo de Roberto Schwarz, no livro, “As ideias fora do lugar”. Obviamente Schwarz destaca a qualidade da construção textual, seus aspectos formais, chegando ao final do texto a afirmar tratar-se da melhor prosa produzida desde Guimarães Rosa.
                “Três mulheres de três pppês” é uma construção narrativa magistral, entretanto gostaria de destacar os trechos onde ele faz uma crônica da mentalidade paulista no período entre 1930 e 1970. Os sonhos de uma classe média endinheirada, seus delírios de arrogarem o destino do país; a defesa de uma pureza moral que não resiste uma análise da sua vida hodierna; e o racismo velado que se mostra bem vestido em trajes de progresso econômico.
                Destaco um trecho, um pouco longo, em que vemos a junção de todos estes aspectos presentes na mentalidade paulista, onde o marido compreende as razões de sua esposa, Hermengarda, em odiar seu texto, “Louvor à dama paulista”, por recordar-lhe uma situação de extrema humilhação.


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                “Hermengarda conta admiravelmente bem a dolorida lembrança da meninice em Campinas. Foi durante a Revolução Constitucionalista. Políticos e militares importantes tinham ido às escolas campineiras fazer discursos e lançar a campanha do ouro para a vitória. Até crianças foram mobilizadas para recolher de casa em casa moedas e alianças a fim de que São Paulo pudesse pagar os aviões e canhões que deveriam assegurar a invencibilidade das nossas tropas. Hermengarda foi especialmente – maliciosamente – encarregada pela professora de visitar um velho telegrafista italiano, seu vizinho. O neto era seu companheiro preferido nos brinquedos da calçada com as outras crianças do bairro. Os adultos os chamavam de namoradinhos. O velho recebeu a menina afetuosamente e riu muito quando ouviu o pedido. Dirigindo-se a um seu amigo presente, disse que era tarde demais, São Paulo já estava frito e enfarinato. O que as professoras deviam fazer era obrigar as crianças a estudar ao invés de encherem suas cabecinhas ocas com bobagens de políticos e militares delirantes com suas revoluções absurdas, condenadas ao fracasso. Hermengarda achou esquisita a opinião do avô de seu amiguinho mas desempenhou conscienciosamente sua missão. Na escola, seu relatório era o mais esperado e começou a falar no silêncio de uma sala apinhada. A notícia de que o velho recusara trocar as alianças de viúvo pelas patrióticas argolinhas de zinco foi recebida por um murmúrio desaprovador que se transformou em alarido indignado quando ela, na mais total inocência, transmitiu o recado de que São Paulo estava frito e enfarinato. Sentiu a pobre menina que as vaias eram também para ela, mas não entendia por quê. Severa, perguntou-lhe a professora o que pretendia fazer de agora em diante, mas a pequenina Hermengarda ficou muda, sem entender. A intrépida mestra voltou à carga, queria saber se a menina voltaria a pôr os pés na casa do telegrafista. Procurando atenuar o clima de hostilidade, Hermengarda afirmou que faria o que a professora mandasse. Esta riu sem simpatia e insistiu, queria saber se a menina pretendia ainda continuar brincando com seu “namoradinho”. Houve um rumor na sala como se a vaia estivesse prestes a recomeçar. A pequenina acusada teve vontade de chorar diante da inesperada pergunta e foi sufocando os soluços que respondeu afirmativamente, vermelha como uma romã. A vaia foi terrível mas a diretora impôs silêncio e a professora pôde fazer um exaltado discurso de acusação contra toda a família do velho telegrafista. Eram ditatoriais conhecidos, nomeados para polpudos empregos pelo interventor da Ditadura em São Paulo, o Coronel Manuel Rabelo, “o amigo dos mendigos”, frisou sarcasticamente. Esses “mendigos” eram flagelados nortistas ou estrangeiros que o grande coração da família paulista recebera. E agora cuspiam no prato estendido como esmola o escarro da traição, aboletados em postos de responsabilidade, um na coletoria, outro na prefeitura, um terceiro na portaria do Paço Municipal sem falar no irmão mais velho que fazia café na polícia, o que explicava a impunidade de todos. O pior era o telegrafista que além de estrangeiro, ditatorial e anarquista, passava as noites ouvindo a rádio do Rio de Janeiro e os dias espalhando pela cidade os boatos do inimigo.

                A Sentinela Campineira divulgou com destaque a assembleia da escola, transcrevendo as principais passagens dos discursos, inclusive as palavras da menina com a informação de que São Paulo estava frito.  A família de minha futura esposa guardou o número desse jornal que Hermengarda, já mocinha, muitas vezes releu chorando. O único pormenor que o repórter omitia foi a última resposta de Hermengarda ao encerrar-se a reunião. Pressionada pela diretora a dizer lealmente diante de todos o que faria de agora em diante, a menina, exausta, limitou-se a declarar que pretendia sim continuar brincando com o menino. As colegas deram-lhe as costas e no dia seguinte a professora pediu aos pais que a tirassem da escola. Apesar de assustados com a prisão do velho telegrafista e do cafeteiro da polícia, os pais de Hermengarda permitiram que as crianças continuassem a se ver, mas no quintal para não sofrerem vexames por parte das velhotas mais exaltadas que caçavam vítimas para atormentar. Já em meados de setembro, as crianças puderam voltar a jogar amarelinha na calçada: a Força Pública Mineira se aproximava de Campinas e as velhotas nas igrejas implorando a paz a qualquer preço.” Três mulheres de três pppês”, Paulo Emílio Sales Gomes. São Paulo: Cosac y Naify, 2007. Páginas 62-64.

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