segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Friedrich Gulda

           Tenho profunda admiração por este cara, um pianista de respeito que transitou entre o clássico e o jazz. Eis um documentário sobre sua vida


Crônica dos anos soviéticos sob o domínio de Stálin

"Olhando para o retrato de Stálin pendurado na parede, Guétmanov levantou o cálice e disse:
- Então camaradas, o primeiro brinde é para o nosso pai. Saúde a ele!
Disse essas palavras com uma voz um tanto rústica e amistosa. A conotação desse tom sem floreios era que todos conheciam a grandeza de Stálin, mas as pessoas reunidas à mesa bebiam à sua saúde apreciando nele acima de tudo o ser humano simples, modesto e sensível. E o Stálin do retrato, com os olhos semicerrados, parecia olhar para a mesa e para os seios fartos de Galina Teriêntievna e dizer: 'Rapaziada, vou pitar o meu cachimbo e me sentar mais perto de vocês´.
- Verdade, vida longa ao nosso pai - disse o irmão da dona da casa, Nikolai Tiriêntievitch. - O que seria de nós sem ele?
Ele olhou para Sagaidak, segurando o cálice perto da boca, esperando que ele dissesse algo, mas Sagaidak contemplou o retrato: 'DE QUE É QUE SE PODE FALAR, NOSSO PAI? VOCÊ JÁ SABE TUDO´, e bebeu. Todos beberam" Vassili Grossman, Vida e destino, pp.110-111.

Obs.: não podia deixar passar essa sem pública-la, o final em caixa alta é por minha conta.
             Quando aparece alguém aqui em casa, é normal entabular uma conversa com a frase, "pra que esse tanto de livros, você já leu todos?". Acostumado, respondo, "eles estão aí, quando preciso leio uma página". É sempre assim, perguntam sobre a finalidade, desgraçada pequenez de espírito. Então, na quinta-feira a agente de saúde visita a minha residência, ao adentrar a sala, encontra uma estante abarrotada de livros, passa à copa e encontra mais duas, e para diante delas. Enquanto isso procuro o tal do papelzinho de controle. Ela pergunta, "você gosta de história", falo para ela que sim. Ela fica admirando os livros, e continua, "minha filha cursa História, eu curso Pedagogia, ela adora livros, eu também". Pensei, "coisa maravilhosa, alguém vir aqui e não perguntar sobre a função dos livros, e se já li todos". Entusiasmado com o inusitado, levei-a até o escritório onde estão mais algumas estantes abarrotadas de livros. Ela olhou os livros, mas tinha que voltar a rotina de trabalho. Eu no fundo, bem no fundo, fico pensando, "pra que" tantos livros, eles estão aí por mera compulsão, não rendem títulos, reconhecimento, ou qualquer coisa além do prazer da leitura. Mas isso já é alguma coisa!

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A sucessão dos moderados


                  Ao ler tantas postagens sobre o financiamento de campanha nas últimas eleições, ou seja, o monopólio privado de um pequeno número de empresas a financiar todos os candidatos com chances de ganhar, mas uma vez indico a leitura do pequeno livro de Luciano Canfora, "Crítica da retórica democrática". O PSDB erra em questionar a seriedade do sistema eletrônico, e das próprias eleições, ao fazê-lo poê em descrédito, ainda mais, o sistema que garante as bases duráveis daqueles grupos que o partido representa. Aumenta-se o absenteísmo e o voto nulo. Por outro lado, aquele que espera reforma política, pode acomodar-se na sua cadeira, ou melhor numa poltrona. Raymond Aron, um liberal sério, de forma bem lúcida, ao contrário dos liberais ingênuos da classe média brasileira (não tenho certeza se ingênuos ou cínicos), já explicitava que a democracia é o governo oligárquico que garante alguns direitos aos seus cidadãos, mas jamais, o direito de decisão. Antes dele, o italiano Gaetano Mosca já afirmava que o horizonte "insuperável" era o governo da minoria sobre a maioria, mesmo que sob a faixada de uma democracia sufragista.

                Num sistema centrista, organizado para garantir o poder dos partidos moderados, não há chance de mudança. Voltando a reforma política, o nosso parlamento bem se encaixa na realidade de todos os regimes democráticos ocidentais, não passa de um amontoado de gente tecendo outros interesses que não os da maioria sufragista, obviamente os interesses banca.

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"No passado, as elites dominantes dedicavam-se a exercer seu domínio por meio das instituições representativas: em primeiro lugar, pelo parlamento. Contemporaneamente à difusão do sufrágio universal, porém, verificaram-se dois fenômenos: de um lado, o nascimento dos partidos moderados de massa (importantes para a manutenção dos equilíbrios sociais mesmo na presença do tão longamente negado sufrágio universal); de outro, o deslocamento progressivo dos locais de decisão para fora dos parlamentos. Este segundo processo tem um longa história, e, decerto, nas décadas mais próximas de nós, tem celebrado os seus triunfos. As decisões cruciais sobre a política econômica provêm dos organismos técnicos e do poder financeiro, enquanto os parlamentares debatem a 'fecundação assistida'...

[E POR ISSO O QUE É MAIS IMPORTANTE HOJE NÃO É A REFORMA POLÍTICA, MAS SIM A EQUIPE ECONÔMICA E UM PLANO DE AUSTERIDADE]

Naturalmente a competência dos grandes banqueiros é indiscutível. É possível até que eles se imaginem como a moderna encarnação dos reis-filósofos platônicos. Permanece o fato de que a progressiva e irresistível translatio imperii rumo a sedes não eletivas, mas técnicas, é um fenômeno tão central que não pode ser ocultado por detrás da retórica da clara universalidade do mecanismo eletivo-representativo." Luciano Canfora, "Crítica da retórica democrática", 71-72.
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              Enquanto isso, os semiletrados da classe média brasileira ruminam as falas/textos dos gendarmes do noticiário brasileiro, pessoas como Constantino, Azevedo, Kramer, Leitão, e outros/outras. O máximo que esses lambe-botas do jornalismo conseguem é participar de algum evento de final de ano promovido por seus chefes, o que não é pouca coisa.

Música na noite






                A editora LP&M regularmente nos brinda com bons livros, a preços módicos. Entre estes livros posso citar esta bela coletânea de Aldous Huxley, cujos os ensaios foram escritos no final dos anos 1920, e início dos anos 1930, intitulada: "Música na noite e outros ensaios." Leitura obrigatória para os amantes da literatura e da música. Mesmo discordando de algumas abordagens, o livro é um deleite de erudição e sensibilidade. Huxley foi um mestre na escolha de títulos para os seus livros, o mesmo ocorre em relação aos ensaios: "o resto é silêncio"; "meditação sobre a lua"; "guinchos e algaravias"; "sobre os charmes da história e o futuro do passado"; "para o puritano todas as coisas são impuras", etc.
        Esta passagem sobre o silêncio na música é maravilhosa, pondo os compositores nos seus devidos lugares hierárquicos.

"Depois do silêncio, aquilo que mais se aproxima de exprimir o inexprimível é a música. (E, de modo significativo, o silêncio é parte integral de toda boa música. Comparada com a de Beethoven ou Mozart, a torrente ininterrupta da música de Wagner é muito pobre em silêncio. Talvez essa seja uma das razões pelas quais ela parece ser tão menos significativa do que as músicas deles. Ela `diz´ menos porque está sempre falando.)" pág. 21

          Alguns parágrafos depois, ele faz uma observação sobre a expressão musical e a literatura na obra do maior gênio da literatura inglesa.

"A habilidade da música para exprimir o inexprimível foi reconhecida pelo maior de todos os artistas verbais. O homem que escreveu Otelo e Conto de inverno foi capaz de proferir em palavras qualquer coisa que palavras possam de alguma forma ser levadas a significar. E no entanto, sempre que algo num teor de intuição ou emoção mística tivesse de ser comunicado, Shakespeare recorria com regularidade à música para que fosse ajudado ´levar as coisas a cabo´..." pág. 22

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O debate público no período Goulart

              Diante de toda a irracionalidade do período eleitoral brasileiro, os preconceitos da nossa elite não causam estranheza, pois são expressos de longa data, de tempos em tempos mobilizados por grupos medíocres. Se para muitos os governos petistas podem ser considerados como social neoliberalismo, eles ficam bem distantes do reformismo de Goulart. Quando falamos dos conteúdos em debate nos dois períodos, a diferença é gritante, durante a gestão de Jango, o debate público centrava-se em questões como: reforma agrária, imperialismo, salário mínimo e o voto do analfabeto. 
            A única semelhança com o período atual, é que o debate público de hoje se pauta pela mobilização macabra dos preconceitos de todo o tipo por nossa burguesia e classe média ciosa de um comportamento imitativo. Assim, as palavras de Roberto Schwarz sobre o clima ideológico do pré-golpe guardam muito significado quando consideradas comparativamente com o cenário atual..

"...Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciência publicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia. Tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua, na forma da ´Marcha da família, com Deus e pela liberdade´, movimentavam petições contra o divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o ´Terço da família´, espécie de rosário bélico para encorajar os generais..." "Cultura e política, 1964-1969" in As ideias fora do lugar, Roberto Schwarz, 2014. pág. 19.

               Pelo visto, a direita ficou mais alarmista ainda, pois afirmar ser o governo petista um exemplo de comunismo, é um desconhecimento histórico.
            Seguem duas passagens de Rousseau, que estão presentes no "Fragmento Biográfico" (Textos Autobiográficos, UNESP). A primeira passagem parecem bem atual, diante dos delírios preconceituosos pós-eleição. A segunda passagem retrata de modo bem verdadeiro o que é um debate literário, ou filosófico. 


"...É preciso lançar o véu do esquecimento sobre os momentos errôneos e evitar imputar a uma nação hospitaleira e honesta o delírio de alguns insensatos..." (págs. 66-67)

"...Vi que, em todas as disputas literárias, nunca se trata de ter razão, mas de ser o último a falar, não se trata de verdade, mas de vitória, e que um simples pedante, que seu adversário nem mesmo se digna a olhar, não deixa de colocar-se entre os concorrentes, menos para combater do que par estar por um momento à vista." (pág. 71)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

"Todas as cópias de um mesmo original se assemelham, mas fazei retratar o mesmo rosto por diversos pintores, dificilmente esses retratos terão entre si a menor relação; são todos bons ou qual é o verdadeiro? Julgai os retratos da alma." Rousseau, "Meu Retrato", Textos autobiográficos, pág. 76.

Mórbida semelhança

            Nos últimos trinta dias, nunca o goiano pareceu tanto com o seu primo rico, o paulista. Mas uma semelhança, meio que "zumbinesca", sempre inferior a matriz, refletida num desejo de voto "aecista"; opiniões conservadoras, beirando o fascismo, ou mesmo, fascistas. Desejo que se materializa até mesmo no clima, uma seca dos diabos.
           Na reunião de professores, a pessoa cita artigos de Dora Kramer, Miriam Leitão e Arnaldo Jabor, como se fossem opiniões avalizadas sobre qualquer coisa.
             Minha esposa chega do consultório médico, e relata a coação da médica: "você vota contra ou a favor do Brasil?". Obviamente vocês já devem ter adivinhado a opção que ela defende como favorável ao Brasil. Tal coação funciona com gente suscetível, e pouco informada, mas imaginem a atitude de má fé que boa parte da classe médica brasileira se presta a fazer neste período eleitoral. Verdadeira corporação que defende reserva de mercado, sem qualquer compromisso com seus pacientes, a classe médica age vampirescamente defendendo o seu estoque de sangue permanente, os usuários de serviços médicos. Isto mesmo, serviços médicos como quaisquer outros serviços, mas que devido ao alto investimento das famílias para terem seus filhos nesta profissão, acabam por pensar que são melhores e têm privilégios.

A civilidade do "primeiro mundo" brasileiro!!

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/10/13/ciclistas-se-queixam-de-pneus-furados-por-tachinhas-em-ciclofaixa-de-sp.htm

A esquerda eleitoral é conivente a farsa parlarmentar

              Os meus amigos que defendem o voto nulo em muitos aspectos têm razão. Um deles merece destaque, por quê os ditos partidos de esquerda não fazem um ataque a sordidez que é o regime parlamentar e as eleições? Não precisa ser um ataque na época das eleições, pode ser depois, obviamente, a questão é outra. O problema é que ninguém quer questionar o próprio sistema metabólico que lhe garante a vida. E por outro lado, são raras as pessoas que se manifestam contra esta farsa, pois tem medo de receberem a pecha de antidemocráticos, totalitários, ou coisa que o valha. Sendo assim, a esquerda eleitoral adora perder eleições, e quando as ganha, chafurda na lama.
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            "Quando a ´riqueza das nações´ dominantes está baseada em longínquos mundos subalternos e dependentes, democratas e antidemocratas (à antiga) - isto é, direita e esquerda (no Ocidente moderno) - numericamente se equilibram. Ou melhor, a tendência é a esquerda perder as eleições. Este é o principal motivo pelo qual as formações políticas de direita ostentam uma particular devoção ao mecanismo parlamentar (vulgarmente chamado `democrático´). E é um dos instrumentos essenciais para o exercício do poder guarnecido de ´consenso´. 
         Na verdade, é impróprio definir como ´democracia´ um sistema político no qual o voto é mercadoria no mercado político, e a admissão ao Parlamento requer um ´dispêndio´ eleitoral fortíssimo por parte do aspirante a ´representante popular´. Esse aspecto entristecedor ( mais ainda no plano ético do que no democrático) e fundamental do sistema parlamentar permanece, em grande parte, obscuro. Contudo, é o pilar básico do sistema. A camada política representa tendencialmente as classes médio-altas e abastadas. Mas é considerado antiparlamentar afirmar abertamente essa verdade de imediata evidência.
            A frequente derrota eleitoral da esquerda nos países ricos de tradição parlamentar consolidada ( que são também os países decisivos do planeta) fica, assim, mais fácil de ser compreendida. À PRIMEIRA VISTA, É CURIOSO QUE JUSTAMENTE A ESQUERDA NÃO APRECIE ENFRENTAR E SE APROPRIAR, E QUEM SABE DIVULGAR, UMA CRÍTICA LÚCIDA DO MECANISMO PARLAMENTAR, DO QUAL É VÍTIMA, POR MEDO DE SER DIFAMADA COM ADJETIVOS E JULGAMENTOS DESONROSOS. É súcuba da cultura de seus adversários.
          Mas, se a esquerda perde muito frequentemente as eleições, isso significa que em geral ela não agrada aqueles a em solicita o consenso. Por que isso acontece? UMA RAZÃO DETERMINANTE É QUE, EM CONDIÇÕES ´NORMAIS´, NOS PAÍSES RICOS E DECISIVOS, A =´MAIORIA´ PREFERE, OU MELHOR, ADORA, OS VALORES, O COMPORTAMENTO E OS MODELOS REPRESENTADOS PELOS DETENTORES DA RIQUEZA. Não é por acaso que os grandes veículos de informação, os jornais, populares ou não, a televisão, etc., costumam tratar exclusivamente da vida (inclusive a vida privada) dos poderosos. Eles são, tanto no plano público quanto no privado, o objeto privilegiado do discurso público. A eventual ´janela´ que surge enfocando a vida de determinadas pessoas comuns só se abre para veicular possivelmente a ´mudança de lugar´de algumas delas na escala social, mudança que talvez tenha se dado por meio desse potente instrumento de poder que é a comunicação de massa." crítica da retórica democrática, Luciano Canfora, págs. 31-32

Quem quer imitar a China?

            O aforismo que segue abaixo diz muito não apenas sobre a realidade política chinesa, mas também sobre a farsa do discurso liberal preocupado com a ideia de democracia. Se nos 1980 e 1990, a China era mais um diabo totalitário, a partir dos anos 2000, as praças Tienanmen foram esquecidas, e a China virou parâmetro da melhor receita econômica. Estranho mesmo é ver assalariado defender este modelo econômico, que implica na inexistência de direitos trabalhistas. Mas vamos ao desejo de Deng-Xiaoping:

              "Em qualquer nação, em qualquer época, há pelo menos um por cento de cidadãos rebeldes a qualquer autoridade. Aqui, porém, entre um bilhão e duzentos milhões de chineses, um por cento significa doze milhões de rebeldes nas praças".

Judas e o calor

               Diante do calor infernal goianiense, não tenho a menor satisfação em dizer que pelo menos não é o calor do Pará. No entanto, os meus conterrâneos estão em festa hoje, no calor dos infernos peculiar de Belém, mas eles têm uma baia gigantesca, praias, rios e igarapés. Voltando ao calor goianiense, pois é impossível dormir até mais tarde, o sol bate à sua janela já por volta das 6:00h da manhã, então o jeito é ficar de pé e fazer a leitura matinal. Desta segue um trecho do mestre Graciliano Ramos, da época em que vivia nas Alagoas, lá também grassam maravilhosas praias. Tudo conspira contra Goiânia!!! Vamos ao trecho retirado de um texto de 1921.
              "Quem é santo nestes tempos prosaicos em que o dólar governa o mundo? As consciências tornaram-se mercadoria vulgar. As almas vendem-se e vendem-se caro.
              Judas hoje não se enforcaria. Já nenhum traidor se enforca. Trinta dinheiros eram, talvez, uma quantia insignificante, capaz de levar um homem ao desespero de passar uma corda no pescoço. Atualmente é possível obter somas tentadoras, que dão rendimentos consideráveis a um traidor que se respeita.
            Nenhum Iscariotes se suicida. Se os contemporâneos seguissem o exemplo do antigo, não haveria no mundo figueiras que bastassem para pendurar tantos laços..." Graciliano Ramos, "Judas", 1921.

OS OLAVETES PIRAM, POIS NEM MESMO OS ENSINAMENTOS DE GRAMSCI SERVIRAM DE ORIENTAÇÃO PARA A GESTÃO PETISTA

Para quem estiver disposto a refletir um pouco sobre as eleições e a inépcia da gestão petista em alguns aspectos.
"§30. O número e a qualidade nos regimes representativos. Um dos lugares-comum mais banais que se repetem contra o sistema eletivo de formação dos órgãos estatais é o de que ´nele o número e lei suprema´ e que a ´opinião de um imbecil qualquer que saiba escrever ( e mesmo de uma analfabeto, em determinados países) vale, para efeito de determinar o curso político do Estado e à Nação suas melhores forças´, etc. (as formulações são muitas, algumas até mais felizes do que a citada, que é de Mario da Silva, na Crítica Fascista de 15 de agosto de 1932, mas o conteúdo é sempre igual). O fato, porém, é que não verdade, de modo algum, que o número seja a ´lei suprema´ nem que o peso da opinião de cada eleitor seja ´exatamente´ igual. Os números mesmo neste caso, são um simples valor instrumental, que dão uma medida e uma relação, e nada mais. E, de resto, o que é que se mede? Mede-se exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas, etc., etc., isto é, sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta. Isto quer dizer que não é verdade que o peso das opiniões de cada um seja ´exatamente´igual. As ideias e as opiniões não ´nascem´ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiverem um centro de formação, irradiação, de difusão, de persuasão, houve um grupo de homens ou até mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma política de atualidade. O número dos ´votos´ é a manifestação terminal de um longo processo, no qual a maior influência pertence exatamente aos que ´dedicam ao Estado e à Nação suas melhores forças´ (quando são tais). Se este pretenso grupo de excelências, apesar das infindáveis forças materiais que possui, não obtém o consenso da maioria, deve ser julgado ou inepto ou não representante dos interesses ´nacionais´, que não podem prevalecer quando se trata de induzir a vontade nacional num sentido e não noutro. ´Desgraçadamente´, cada um é levado a confundir seu próprio ´particular´ com o interesse nacional, e, portanto, a considerar ´horrível´, etc., que a decisão caiba à ´lei do número´; o melhor é se tornar elite por decreto. Não se trata, portanto, de que os que ´têm muito´ intelectualmente se sintam reduzidos ao nível do último analfabeto, mas de que alguns presumam ter muito e pretendam tirar do homem ´comum´ até mesmo aquela fração infinitesimal de poder que ele possui para decidir sobre o curso da vida estatal" Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere vol.3, págs. 81-82.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Fux, aquele que esta surfando na "eterna" onda brasileira

          "Olha que os homens, valem  por diferentes modos, e que o mais seguro de todos  é valer  pela opinião dos outros homens. Não estragues  as vantagens  de tua posição, os teus meios" Conselho do pai de Brás Cubas. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis


             Eis que no horizonte o zé povinho vê uma onda, gigante e sem proporções. Todos enxergam a mudança, mas no dia a dia a estrutura permanece a mesma, a onda não trará mudanças, chegará como marola, aliás palavra preferida de alguns. Eis o que chegará, uma marola. 
        Roberto Schwarz escreveu um vigoroso ensaio sobre a nossa prática do favor. Procurou relacionar a nossa estrutura escravista à forma como assimilamos o ideário burguês, e o seu corolário liberal. "As ideias fora do lugar" é o título do ensaio, e mesmo tratando do século XIX, as características sociais analisadas no mesmo, permanecem atuais quando vemos se repetirem o clientelismo e a política do favor, no caso da filha de Fux."... O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça, que, embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno."  Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar, pág. 52
             Se alguns veem mudanças no horizonte, se as desejam, trata-se apenas do nome fantasia, pois a estrutura permanecerá a mesma,  permitindo a continuidade da prática exemplificada pelas ações de Luiz Fux.






segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Belo depoimento

          Aos 80 anos, a historiadora, Maria Yedda Leite Linhares, concedeu uma longa entrevista que consta no livro, Conversas com Historiadores Brasileiros (Ed. 34). No final da entrevista, ela nos brinda com este belo relato de suas atividades naquele momento, 2001.

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"...Como professora emérita da UFRJ, continuo em exercício, participando em cursos, seminários, bancas etc., e cuido de mim: ando muito, faço bicicleta, hidroterapia, RPG, cuido dos gatos e da casa, e adoro cozinha. Continuo lendo meu Dante Alighieri, e, vez por outra, releio um conto de Joyce. Continuo adorando cinema e música, quanto mais moderna melhor, relembrando minha infância cearense, minha paisagem nordestina, rezando e torcendo pela grande mudança que um dia virá, num futuro sem vítimas da fome, num Brasil sem latifundiários." (pág. 43)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Verbetes interessantes para o período eleitoral brasileiro

            Em período eleitoral é bom refletir sobre alguns termos usados pelos candidatos (as). Então, visando contribuir com os nossos eleitores que acreditam que podem mudar alguma coisa na ordem estabelecida, disponibilizo alguns verbetes do “Dicionário do Diabo”, de Ambrose Bierce. Não estranhe alguns verbetes passarem pela religião. Trata-se de uma escolha deliberada, pois nestas eleições, a religião tornou-se elemento fundamental no discurso de alguns (mas) candidatos (as).

OBS.: AVISO AOS CRISTÃOS INDIGNADOS. Os cristãos mais indignados com o comportamento alheio, são os que menos leem, e que sustentam suas opiniões com base nas falácias de outros, mais ignorantes ainda, ministros religiosos. Para estes, deixarei aqui alguns links, tanto para informação sobre quem foi Ambrose Bierce, e o que significa a palavra sarcasmo.




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CANDIDATO – Cavalheiro modesto que foge à distinção da vida privada e busca diligentemente a honrosa obscuridade do cargo público.
CLÉRIGO – Homem que se dedica a cuidar dos nossos interesses espirituais, como meio de melhorar os seus materiais.
COMPROMISSO – ajuste de interesses conflitantes, para dar a cada adversário a satisfação de pensar que obteve aquilo a que não tinha direito e que nada perdeu exceto o que realmente devia.
CONSERVADOR – Estadista enamorado dos males existentes, distinto do liberal, que deseja substituí-lo por outros.
CRISTÃO – Alguém que segue os ensinamentos do Cristo, desde que não inconsistentes com uma vida de pecado.
ELEITOR – Alguém que goza do sagrado privilégio de votar num homem escolhido por outro.
ESCRITURAS – Os Livros Sagrados da nossa santa religião, distintos dos escritos falsos e profanos em que se baseiam  todas as demais religiões.
EXORTAR – Em assuntos religiosos, pôr a consciência de outrem na grelha e tostá-la até ficar incomodamente queimada.
FANÁTICO – Alguém obstinadamente preso a uma opinião que não é a nossa.
– Crença sem fundamento no que é contado por alguém que fala sem conhecimento sobre coisas sem paralelo.
IDIOTA – Membro de uma grande e poderosa tribo cuja influência nos assuntos humanos sempre foi dominante e controladora.
               - A atividade do idiota não se confina a qualquer área especial de pensamento ou ação, mas impregna e regula todo o conjunto. Tem ele a última palavra em tudo, e sua decisão é inapelável. Fixa os modelos de opinião e o gosto, dita os limites de palavra e circunscreve a conduta com uma linha-limite.
IMPUNIDADE – Riqueza.
JUSTIÇA – Produto que, em condição mais ou menos adulterada, o Estado vende ao cidadão como prêmio à sua fidelidade, aos impostos que paga e aos serviços postais que presta.
LADRÃO – Um homem de negócios sincero.
LIBERDADE – Um dos mais preciosos bens da imaginação.
MÃO – Singular instrumento usado na extremidade do braço humano e comumente metido no bolso dos outros.
MATAR – Criar vaga sem nomear sucessor.
MORAL – Que tem a qualidade da conveniência geral. Conforme a um padrão de direito local e mutável.
NEPOTISMO – Nomear a avó para um cargo, pelo bem do Partido.
ORAR – Pedir que as leis do universo sejam anuladas em favor de um peticionário isolado confessadamente imerecedor.
ORATÓRIA – Conspiração entre a palavra e a ação para ludibriar o entendimento;
                - Uma tirania moderada pela estenografia.
PATRIOTA – Alguém pra quem os interesses de uma parte parecem superiores aos do todo. É o trouxa dos estadistas e a ferramenta dos conquistadores.
PATRIOTISMO – Lixo combustível pronto para que a tocha de qualquer ambicioso lhe ilumine o nome.
PERORAÇÃO – A explosão de um foguete oratório. Tonteia, mas para o observador que não tem o tipo adequado de nariz, sua mais notória peculiaridade é o cheiro das várias qualidades de pólvora usadas em seu preparo.
PLENÁRIO – Em política, ratoeira imaginária onde o estadista luta contra os anais.
POLÍTICA – Conflito de interesses disfarçado em debate de princípios.
                - A condução dos negócios públicos para o benefício particular.
POLÍTICO – Uma enguia na lama fundamental sobre que se ergue a superestrutura da sociedade organizada. Quando ele se vira, confunde a agitação da cauda com o tremor do edifício. Comparado com o estadista, sofre a desvantagem de estar vivo.
PRESIDÊNCIA – O leitão escorregadio, no jogo roceiro da política americana.
PRESIDENTE – A principal figura num pequeno grupo de homens sobre os quais – e sobre eles somente – se sabe positivamente que números imensos de seus compatriotas não querem nenhum para a presidência.
PROPRIEDADE – Qualquer coisa material, sem nenhum valor especial, que possa pertencer a A para despertar a cobiça de B.
                - Qualquer coisa que satisfaça a paixão de possuir de um e a desaponte em todos os outros.
                - Objeto da breve rapacidade e da longa indiferença humana.
RECONTAGEM – Na política americana, tornar a jogar os dados, segundo jogador contra o qual estão chumbados.
REFORMA – Coisa que muito satisfaz aos reformadores que se opõem à reformação.
RESPEITABILIDADE – Filha da união entre uma careca e uma conta bancária.
SANTO – Um pecador revisto e corrigido.
SENADO – Corporação de cavalheiros idosos, incumbida de altos deveres e deslizes.
VEREADOR – Criminoso astuto, que encobre seu furto secreto sob o disfarce da pilhagem aberta.
VOTO – Instrumento  e símbolo do poder do homem livre de fazer de si um tolo e do país uma ruína.

OBS.: todos os verbetes foram retirados do texto, “Dicionário do Diabo”, presente na coletânea, “Fábulas Fantásticas” (Editora artenova, 1973), de Ambrose Bierce.


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Fanáticos são os outros

           Sobre a fraternidade entre os religiosos cristãos, penso que vale para todos os religiosos, inclusive os não cristãos, "eles são ecumênicos apenas quando tem um inimigo em comum".
          Ou como disse Ambrose Bierce, no verbete "fanático" do seu, "Dicionário do Diabo":
            "Fanático - alguém obstinadamente preso a uma opinião que não é a nossa" (Ambrose Bierce, Diocionário do Diabo, artenova, 1973, pág. 104)
             Ou melhor:
             "Escrituras - Os Livros Sagrados da nossa santa religião, distintos dos escritos falsos e profanos em que se baseiam todas as demais crenças" (Ambrose Bierce, Diocionário do Diabo, artenova, 1973, pág. 102)

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Edição do dia 31/08/2014
31/08/2014 21h55 - Atualizado em 01/09/2014 18h05

Mistério das igrejas incendiadas assusta moradores do interior de MG

Desde março, criminosos colocam fogo em capelas durante a noite.
Na frente de cada igreja queimada, bandidos deixam uma cruz de sal grosso.

Mistério em Minas Gerais. Uma série de crimes religiosos está desafiando a polícia e assustando a população. De março até agora, sete igrejas católicas foram incendiadas. Os bandidos também quebram as imagens dos santos e deixam uma assinatura: uma cruz de sal grosso.
As noites no interior de Minas Gerais escondem um mistério. Os bandidos agem na madrugada. Eles se aproveitam de um costume dos moradores da zona rural: quando anoitece, todo mundo se recolhe. Ninguém na estrada, nem luz.

Os criminosos estão colocando fogo em capelas. Quando amanhece, é possível ver a destruição.
E um fato chama a atenção: em frente a cada igreja queimada, é deixada uma cruz de sal grosso.
“Mistério assim do mal, né? Eu acredito”, diz o lavrador Xisto Romualdo.
Os ataques religiosos começaram em março. Até agora, sete capelas foram incendiadas em quatro cidades. Elas ficam a cerca de 250 quilômetros de Belo Horizonte.

A localização das igrejinhas facilita a ação dos bandidos. Todas estão em áreas isoladas.
A capela de Macuco foi incendiada no começo de agosto. Os bandidos usaram uma mesa como apoio para entrar pela janela. Restaram apenas as paredes.
 
“Nós usava a capela assim pra assistir missa, catequese, consultório médico também. Tudo de bom que tinha na comunidade era aqui”, lamenta Tereza Gerônimo, coordenadora do Conselho Comunitário Pastoral de Macuco.
Seu José lamenta a destruição da igreja que ajudou a construir.

Fantástico: Quem o senhor acha que fez isso?
José Sabino Figueiredo: Gente não pode ser não. Gente batizada não faz um papel desses.
Na mesma noite, uma hora depois, a poucos quilômetros da comunidade de Macuco, outra capela foi incendiada. No povoado de Quatro Barras também foi deixada uma cruz de sal.
“Não estou dormindo de noite. Estou muito preocupada ainda com o que eu vi que nunca tinha visto: o santuário nosso, de nós rezar todo domingo, dia de semana nós reza também, pegando fogo sem a gente poder salvar”, lamenta a catequista Maria da Glória Batista.
A capela tinha sete imagens de santos. Sobrou apenas uma, de Nossa Senhora Aparecida. Durante o incêndio, a mesa onde ela estava apoiada foi quase toda queimada, sobrou apenas um cantinho onde a imagem estava.

“Sobrou uma imagem pra comunidade firmar mais e acreditar na Nossa Senhora”, diz a dona de casa Maria Rita Santos.
A polícia investiga os ataques às igrejas e suspeita que sejam casos de intolerância religiosa.

“Por conta do incêndio, não há como colher digitais. Aproveitar para fazer um apelo, se alguém tiver informação, que traga até nós pra que sejam tomadas as medidas cabíveis”, pede o delegado Edvin Otto.

Em Senador Firmino, o alvo foi a capela da Comunidade de Guaxupé. O prédio resistiu ao fogo, mas os criminosos deixaram outras marcas. Do lado de fora da capela estão os restos das imagens em um saco.

Os incêndios misteriosos mudaram a rotina no campo. As capelas agora vivem trancadas. E os moradores, têm que conviver com o medo.
Para Pedro Ribeiro, doutor em ciências da religião, historicamente a cruz de sal grosso e o fogo são sinais de purificação.
“Fazer uma cruz de sal junto de alguma capela, junto a um espaço qualquer, significa ‘vamos purificar’, ‘vamos afastar os maus espíritos que estavam aqui’. O que é intrigante pra mim: quem acha que em uma capelinha, em que as pessoas se reúnem para rezar, para celebrar, que aquilo dali é uma coisa má, é uma coisa de espírito mau?”, questiona o doutor.
Ele diz que a destruição das igrejas pode significar uma agressão do catolicismo.
“São sinais de dizer: ‘quem faz aquilo que meu Deus proíbe está errado e, portanto, eu tenho que punir’. Ora, isso é intolerância. Isso vai contra todo pensamento da tolerância religiosa, da aceitação do diferente, do sadio diálogo entre as religiões”, diz Pedro Ribeiro.

Pérola do sábado

             Sempre visito uma revistaria, aqui próximo a minha casa. No caixa geralmente encontro o mesmo rapaz, jovem e gay. Então, no sábado peguei uma revista semanal, na qual a presidenciável Marina Silva estava em destaque. O rapaz ao me ver com a revista, comentou: "nossa, a candidata deveria ser a Rachel Sheherazade". Pensei, "só pode ser brincadeira". Não satisfeito, o rapaz emendou, "ela parece ter a mente aberta." Paguei, e segui o meu caminho pensando, "é melhor ser um avestruz". 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As vicissitudes da democracia eleitoral

      Eis um trecho adequado ao período eleitoral, Getúlio Vargas aconselha a população brasileira a votar no general Eurico Gaspar Dutra, aquele que apoiou a deposição de Vargas meses antes. Dutra, político sintonizado com os interesses do empresariado internacional, recebe apoio de um nacionalista empedernido.

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Brasileiros!!

              A abstenção é um erro. Não se vence sem luta, nem se participa da vitória ficando neutro. Fora do governo, meu espírito sofreu decantação de quaisquer ressentimentos, por injustiças sofridas...
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             O general Eurico Gaspar Dutra, candidato ao P.S.D, em repetidos discursos e, ainda agora, em suas últimas declarações, colocou-se dentro das idéias do programa trabalhista e assegurou  a esse partido garantias de apoio, de acordo com as suas forças eleitorais. Ele merece, portanto, os nossos sufrágios.
...
Getúlio Vargas

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Candido sobre Machado de Assis

           Antonio Candido publicou uma pequena obra introdutória à literatura brasileira, há alguns anos, precisamente em  1987, destinada a leitores estrangeiros ciosos de uma informação rápida sobre a história da literatura brasileira. O livro, cujo o título é "Iniciação à literatura brasileira" (Editora Ouro sobre Azul) nos proporciona uma leitura deliciosa, e dele retirei este precioso e sintético juízo sobre Machado de Assis, e o que o define como um gênio da literatura universal. Aliás, juízo que vale para todos os grandes escritores, e por que alguns são atuais e outros não.

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             "Sua obra é variada e tem a característica das produções eminentes: satisfaz tanto aos requintados quanto aos simples. Ela tem, sobretudo, a possibilidade de ser reinterpretada à medida que o tempo passa, porque, tendo uma dimensão profunda de universalidade, funciona como se se dirigisse a cada época que surge..." Antônio Candido sobre a obra de Machado de Assis, "Iniciação à literatura brasileira", pág. 65. 
Do disco "Sonny Meets Hawk!", Sonny Rollins e Coleman Hawkins, dois gigantes do tenor.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Direito ao corpo

            O fato de a mulher muçulmana não ter o livre direito sobre seu corpo está entre as principais críticas ao mundo islâmico. De fato é uma crítica pertinente, entretanto, é correto determinar tal prática como uma das justificativas para afirmar que os muçulmanos compõem uma civilização atrasada? A Arábia Saudita tem uma legislação extremamente restritiva em relação as mulheres, no entanto, é um dos países mais ricos do mundo, e possui elevado grau de modernidade econômica. Os Estados Unidos não se furtam a negociar e apoiar  os reis sauditas. Mas, mesmo diante desta contradição, vemos espíritos ingênuos apoiarem a ideia de uma guerra contra o atraso islamita, seguros de que estão defendendo a civilização ocidental. Também na nossa civilização Ocidental, há casos de barbárie, e negação do direito ao corpo.
          Há alguns dias atrás, lembrava-me de ter lido um texto onde eram destacados os casos de contaminação por herpes de bebês submetidos a circuncisão, o que ocorreu na cosmopolita Nova York. Ora, pois ali existem judeus ortodoxos, que submetem seus filhos a tais abusos. Obviamente a eles não é creditado a pecha de radicais incivilizados. Se em Nova York, terra secularizada, isto acontece, imaginem em Israel, nas comunidades mais ortodoxas. Mas os bárbaros estão sempre do outro lado do muro.  Para melhor informação, segue o link da reportagem no site de Paulo Lopes, e depois, o texto a que me referi.

Reportagem no site de Paulo Lopes: 

Texto de Christopher Hitchens sobre caso ocorrido em 2005.

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...Descobriu-se que em Nova York, no ano de 2005, o ritual, realizado por um mohel de 57 anos de idade, trasmitiu herpes genital a vários meninos e causou a morte de pelo menos dois deles. Em circunstâncias normais a revelação teria levado o Departamento de Saúde Pública a proibir a prática e o prefeito denunciá-la. Mas, na capital do mundo moderno, na primeira década do século XXI, não foi o caso. Em vez disso, o prefeito Bloomberg ignorou os relatórios de respeitados médicos judeus que alertavam para o perigo do costume e determinou a sua burocracia sanitária que adiasse qualquer veredicto. A questão fundamental, disse ele, era assegurar que a livre prática da religião não estivesse sendo infringida. 
Christopher Hitchens, deus não é Grande, pág.55 

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Segue um trecho elucidativo sobre o prazer das mulheres, segundo os princípios de Maimônides, em o Guia para os perplexos.

Com relação à circuncisão, uma das razões para ela, em minha opinião, é um desejo de conseguir uma redução do intercurso sexual e um enfraquecimento do órgão em questão, de modo que essa atividade seja reduzida e o órgão esteja no estado de maior repouso possível. Acredita-se que a circuncisão aperfeiçoa o que é congenitamente defeituoso (...) Como as coisas naturais podem ser defeituosas de modo a precisarem ser aperfeiçoadas externamente, especialmente quando sabemos quão útil é o prepúcio para aquele membro? Na verdade, esse mandamento não foi prescrito com o objetivo de aperfeiçoar o que é moralmente defeituoso. A dor corporal causada ao membro é o verdadeiro objetivo da circuncisão. (...) O fato de que a circuncisão reduz a capacidade de excitação sexual e algumas vezes talvez diminua o prazer é indubitável. Pois, se no nascimento esse membro sangrar e tiver sua cobertura removida, ele indubitavelmente tem de ser enfraquecido.

Apud, deus não é Grande, pág. 205

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Se foram criados limites a barbárie religiosa, eles tiveram origem na secularização. O resto é bobagem...



domingo, 10 de agosto de 2014

Graciliano Ramos sobre Lampião

          Neste texto de 1931, Graciliano Ramos tenta compreender não o Lampião, indivíduo, mas o contexto social que explica o surgimento de vários lampiões.

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Lampião

Lampião nasceu há muitos anos, em todos os estados do Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má.
Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor não veja alusões a um homem só.
Lampião nasceu, pois, há muitos anos, mas está moço e de boa saúde. Não é verdade que seja doente dos olhos: tem, pelo contrário, excelente vista.
É analfabeto. Não foi, porém, a ignorância que o levou a abraçar a profissão que exerce.
No começo da vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele aguentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco.
As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita.
O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações de cabra preta, tomou o rifle e ganho a capoeira. Lá está como bicho montado.
Conhecidos dele, velhos, subiram para o Acre; outros, mais moços, desceram para São Paulo. Ele não: foi ao Juazeiro, confessou-se ao padre Cícero, pediu a bênção a Nossa Senhora e entrou a matar e roubar. É natural que procure o soldado que lhe pisava o pé, na feira, o delegado que lhe dava pancada, o promotor que o denunciou, o proprietário que lhe deixava a família em jejum.
Às vezes utiliza outras vítimas. Isto se dá porque precisa conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira e que é mais eficaz das suas armas.
Queima fazendas. E ama, apressado, um bando de mulheres. Horrível. Mas certas violências, que indignam criaturas civilizadas, não impressionam quem vive perto da natureza. Algumas amantes de Lampião se envergonham, realmente, e finam-se de cabeça baixa; outras, porém, ficam até satisfeitas com a preferência e com os anéis de miçanga que recebem.
Lampião é cruel. Naturalmente. Se ele não se poupa, como pouparia os inimigos que lhe caem entre as garras? Marchas infinitas, sem destino, fome, sede, sono curto nas brenhas, longe dos companheiros, porque a traição vigia... E de vez em quando a necessidade de sapecar um amigo que deita o pé adiante da mão...
Não podemos razoavelmente esperar que ele proceda com os que têm ordenado, os que depositam dinheiro no banco, os que escrevem em jornais e os que fazem discursos. Quando a política o apanhar, ele estará metido numa toca, ferido, comendo uma cascavel ainda viva.
Como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas.
Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco.
O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.
E já agora nos traze, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis.
Afinal, somos da mesma raça. Ou das mesmas raças.
É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola.

(Originalmente em: RAMOS, Graciliano. “Lampião”. Revista Novidade. Maceió, n.3, p.3, 25 abr. 1931.) Retirado de “Cangaços”, págs. 27-30, Editora Record.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

VOCÊS E NÓS

Da página de Albino M., o qual assina a tradução que vem após o original.

USTEDES Y NOSOTROS

Ustedes cuando aman
exigen bienestar
una cama de cedro
y un colchón especial

nosotros cuando amamos
es fácil de arreglar
con sábanas qué bueno
sin sábanas da igual

ustedes cuando aman
calculan interés
y cuando se desaman
calculan otra vez

nosotros cuando amamos
es como renacer
y si nos desamamos
no la pasamos bien

ustedes cuando aman
son de otra magnitud
hay fotos chismes prensa
y el amor es un boom

nosotros cuando amamos
es un amor común
tan simple y tan sabroso
como tener salud

ustedes cuando aman
consultan el reloj
porque el tiempo que pierden
vale medio millón

nosotros cuando amamos
sin prisa y con fervor
gozamos y nos sale
barata la función

ustedes cuando aman
al analista van
él es quien dictamina
si lo hacen bien o mal

nosotros cuando amamos
sin tanta cortedad
el subconsciente piola
se pone a disfrutar

ustedes cuando aman
exigen bienestar
una cama de cedro
y un colchón especial

nosotros cuando amamos
es fácil de arreglar
con sábanas qué bueno
sin sábanas da igual.

Mario Benedetti

VOCÊS E NÓS

Vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial

nós quando amamos
é fácil de arranjar
com lençóis é tão bom
sem lençóis é bom também

vocês quando amam
contam o juro
e quando se desamam
contam outra vez

nós quando amamos
é como renascer
e se nos desamamos
sentimo-nos mal

vocês quando amam
são de outra magnitude
mete fotos imprensa rumores
e o amor é um boom

nós quando amamos
é um amor comum
tão simples e saboroso
como gozar de saúde

vocês quando amam
consultam o relógio
porque o tempo que perdem
vale meio milhão

nós quando amamos
é sem pressa e com fervor
gozamos e não nos fica
nada caro o serviço

vocês quando amam
até ao analista vão
e ele é quem diz
se o fazem bem ou mal

nós quando amamos
sem tanta estreiteza
o subconsciente pipila
e põe-se a desfrutar

vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial

nós quando amamos
é fácil de arranjar
com lençóis é tão bom
sem lençóis é bom também.

(Trad. A.M.)
"...A história brasileira assemelha-se à história universal: predomínio significa esmagamento de outrem ou de outra classe. A propalada 'ternura' brasileira é um mito criado para esconder uma realidade mais crua...A 'ternura' é a imagem falsa, a criação de um conceito ideológico por uma classe ( a dominante) que quer criar de si uma imagem ilusória." Edgard Carone

A seleção de Graciliano Ramos

             
             Os dez melhores romances brasileiros: Inocência, de Taunay; Casa de pensão, de Aluísio Azevedo; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Jubiabá, de Jorge Amado; Os corumbas, de Amando Fontes; Doidinho, de José Lins do Rego; As três Marias, de Rachel de Queiroz; Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira; O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; e Os caminhos da vida, de Octávio de Faria.
             
              Os dez melhores romances do mundo: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; Gargantua, de François Rabelais; As ilusões Perdidas, de Honoré Balzac; Ana Karenina, de Leon Tolstoi; Cândido, de Voltaire; Crime e Castigo, de Dostoiévski; Pickwick, de Charles Dickens; Os sete enforcados, de Leonid Andreiev; e Os Maias, de Eça de Queirós.

                     A lista foi feita a pedido da Revista Acadêmica, e retirada do livro, O velho Graça (Boitempo), de Dênis de Moraes, pág. 166.