O livro, “Três mulheres de três pppês”, de Paulo Emílio Sales Gomes é uma
preciosidade, pouco conhecido, não é desses recomendados na mídia, não sei se
nas faculdades de Letras o mesmo é recomendado. A verdade é que o conheci
através de um artigo de Roberto Schwarz, no livro, “As ideias fora do lugar”.
Obviamente Schwarz destaca a qualidade da construção textual, seus aspectos
formais, chegando ao final do texto a afirmar tratar-se da melhor prosa
produzida desde Guimarães Rosa.
“Três mulheres de três pppês” é uma construção
narrativa magistral, entretanto gostaria de destacar os trechos onde ele faz
uma crônica da mentalidade paulista no período entre 1930 e 1970. Os sonhos de
uma classe média endinheirada, seus delírios de arrogarem o destino do país; a
defesa de uma pureza moral que não resiste uma análise da sua vida hodierna; e
o racismo velado que se mostra bem vestido em trajes de progresso econômico.
Destaco
um trecho, um pouco longo, em que vemos a junção de todos estes aspectos
presentes na mentalidade paulista, onde o marido compreende as razões de sua
esposa, Hermengarda, em odiar seu texto, “Louvor
à dama paulista”, por recordar-lhe uma situação de extrema humilhação.
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“Hermengarda conta admiravelmente bem a
dolorida lembrança da meninice em Campinas. Foi durante a Revolução
Constitucionalista. Políticos e militares importantes tinham ido às escolas
campineiras fazer discursos e lançar a campanha do ouro para a vitória. Até
crianças foram mobilizadas para recolher de casa em casa moedas e alianças a
fim de que São Paulo pudesse pagar os aviões e canhões que deveriam assegurar a
invencibilidade das nossas tropas. Hermengarda foi especialmente –
maliciosamente – encarregada pela professora de visitar um velho telegrafista
italiano, seu vizinho. O neto era seu companheiro preferido nos brinquedos da
calçada com as outras crianças do bairro. Os adultos os chamavam de namoradinhos.
O velho recebeu a menina afetuosamente e riu muito quando ouviu o pedido.
Dirigindo-se a um seu amigo presente, disse que era tarde demais, São Paulo já
estava frito e enfarinato. O que as professoras deviam fazer era obrigar
as crianças a estudar ao invés de encherem suas cabecinhas ocas com bobagens de
políticos e militares delirantes com suas revoluções absurdas, condenadas ao
fracasso. Hermengarda achou esquisita a opinião do avô de seu amiguinho mas
desempenhou conscienciosamente sua missão. Na escola, seu relatório era o mais
esperado e começou a falar no silêncio de uma sala apinhada. A notícia de que o
velho recusara trocar as alianças de viúvo pelas patrióticas argolinhas de
zinco foi recebida por um murmúrio desaprovador que se transformou em alarido
indignado quando ela, na mais total inocência, transmitiu o recado de que São
Paulo estava frito e enfarinato. Sentiu a pobre menina que as vaias eram
também para ela, mas não entendia por quê. Severa, perguntou-lhe a professora o
que pretendia fazer de agora em diante, mas a pequenina Hermengarda ficou muda,
sem entender. A intrépida mestra voltou à carga, queria saber se a menina
voltaria a pôr os pés na casa do telegrafista. Procurando atenuar o clima de
hostilidade, Hermengarda afirmou que faria o que a professora mandasse. Esta
riu sem simpatia e insistiu, queria saber se a menina pretendia ainda continuar
brincando com seu “namoradinho”. Houve um rumor na sala como se a vaia
estivesse prestes a recomeçar. A pequenina acusada teve vontade de chorar diante
da inesperada pergunta e foi sufocando os soluços que respondeu
afirmativamente, vermelha como uma romã. A vaia foi terrível mas a diretora
impôs silêncio e a professora pôde fazer um exaltado discurso de acusação
contra toda a família do velho telegrafista. Eram ditatoriais conhecidos,
nomeados para polpudos empregos pelo interventor da Ditadura em São Paulo, o
Coronel Manuel Rabelo, “o amigo dos mendigos”, frisou sarcasticamente. Esses
“mendigos” eram flagelados nortistas ou estrangeiros que o grande coração da
família paulista recebera. E agora cuspiam no prato estendido como esmola o
escarro da traição, aboletados em postos de responsabilidade, um na coletoria,
outro na prefeitura, um terceiro na portaria do Paço Municipal sem falar no
irmão mais velho que fazia café na polícia, o que explicava a impunidade de
todos. O pior era o telegrafista que além de estrangeiro, ditatorial e anarquista,
passava as noites ouvindo a rádio do Rio de Janeiro e os dias espalhando pela
cidade os boatos do inimigo.
A Sentinela Campineira
divulgou com destaque a assembleia da escola, transcrevendo as principais
passagens dos discursos, inclusive as palavras da menina com a informação de
que São Paulo estava frito. A família de
minha futura esposa guardou o número desse jornal que Hermengarda, já mocinha,
muitas vezes releu chorando. O único pormenor que o repórter omitia foi a
última resposta de Hermengarda ao encerrar-se a reunião. Pressionada pela diretora
a dizer lealmente diante de todos o que faria de agora em diante, a menina,
exausta, limitou-se a declarar que pretendia sim continuar brincando com o
menino. As colegas deram-lhe as costas e no dia seguinte a professora pediu aos
pais que a tirassem da escola. Apesar de assustados com a prisão do velho
telegrafista e do cafeteiro da polícia, os pais de Hermengarda permitiram que
as crianças continuassem a se ver, mas no quintal para não sofrerem vexames por
parte das velhotas mais exaltadas que caçavam vítimas para atormentar. Já em
meados de setembro, as crianças puderam voltar a jogar amarelinha na calçada: a
Força Pública Mineira se aproximava de Campinas e as velhotas nas igrejas implorando
a paz a qualquer preço.” Três mulheres de três pppês”, Paulo Emílio Sales
Gomes. São Paulo: Cosac y Naify, 2007. Páginas 62-64.