domingo, 25 de janeiro de 2015

Algumas observações sobre a amizade, por Vassili Grossman


"...
      A amizade de intelecto, contemplativa, filosófica, normalmente exige unidade de pontos de vista, mas essa semelhança pode não ser universal. Às vezes a amizade se manifesta na discussão, na dessemelhança dos amigos.
     Se os amigos são semelhantes em tudo, se um é o reflexo do outro, então a discussão com o amigo vira uma discussão consigo mesmo.
    O amigo é aquele que justifica as fraquezas, os defeitos e até os vícios que você tem, e que confirma a sua razão, seu talento e seu mérito.
      O amigo é aquele que, por amor, revela a você suas próprias fraquezas, defeitos e vícios.
     Assim, a amizade tem fundamento na semelhança, mas se manifesta nas diferenças, contradições, dessemelhanças. Uma pessoa na amizade tenta, de forma egoísta, receber aquilo que não tem. Outra pessoa tenta generosamente dar aquilo que possui.
...
     A verdadeira amizade não depende de o seu amigo estar no trono ou de, derrubado trono, ter ido parar na prisão. A verdadeira amizade se refere às características internas da alma e é indiferente à glória e à força exterior.
   A amizade tem formas variadas, conserva-se de maneiras diversas, mas um fundamento da amizade é inabalável: a fé na constância do amigo, na fidelidade do amigo. E por isso a amizade é especialmente maravilhosa onde o homem serve o sábado. Lá, onde o amigo e a amizade foram imolados em nome de interesses superiores, o homem declarado inimigo dos ideais superiores, que perdeu todos os seus amigos, acredita que não vai perder um único amigo." Vida e Destino, Vassili Grossman, págs. 382-383

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

             Parte de um diálogo entre prisioneiros de um campo de concentração russo, durante a Segunda Guerra Mundial, deixo claro que se trata de uma peça ficcional, mas escrita por alguém que passou um tempo naqueles maravilhosos locais. No campo, encontravam-se criminosos comuns e prisioneiros políticos da época dos expurgos promovidos pelo companheiro Stálin.
"---- Sabe o que eu pensei? Não tenho inveja de quem está livre. Tenho inveja dos que estão nos campos de concentração alemães. Como é bom! Você se senta e sabe que aquele que está batendo em você é um fascista. Nosso destino é mais terrível, mais difícil: SÃO OS NOSSOS, OS NOSSOS, OS NOSSOS E OS NOSSOS." Vida e destino, Vassili Grossman. Pág. 196
Obs.: os trechos em caixa alta são por minha conta.
               Daqui da minha estância de repouso, Barra do Garças, estava relutante em postar o trecho que vai abaixo, não pelo potencial explosivo do mesmo, pois acho bem brando. Mas, devido ao momento, a suscetibilidade de alguns está por um fio. Como sou um iconoclasta, e os anos não abrandaram esta minha característica, pelo contrário, eles o reforçaram, segue o trecho de Aldous Huxley....

"... Um dos argumentos típicos em favor da imortalidade platônica e cristã é este: se não houvesse uma vida futura, ou de todo modo nenhuma crença numa vida futura, os homens estariam justificados em se comportar como animais e, estando justificados, sem demora começariam a seguir todos o conselho de Horácio e do Pregador para que não fizessem nada exceto comer até estourar, encher a cara e copular. Mesmo um homem da inteligência de Dostoiévski afirma de maneira oracular que ´todas as coisas seriam permitidas´caso não houvesse nada semelhante à imortalidade. Esses moralistas parecem esquecer que existem muitos seres humanos que simplesmente não querem passar suas vidas comendo, bebendo e fazendo festa ou, de modo alternativo, como heróis russos, estuprando, assassinando e torturando moralmente seus amigos. O tédio mortal da vida horaciana e o desprazer nauseabundo da vida dostoievskiana seriam mais do que suficientes, com sobrevivência ou sem sobrevivência, para me manter de qualquer maneira (nesses assuntos uma pessoa só pode falar por si mesma) inabalável no caminho estreito do dever doméstico e do trabalho intelectual. Porque o caminho estreito conta com uma perspectiva incomparavelmente mais favorável do que a trajetória da luxúria; realizados, os deveres domésticos são uma fonte de felicidade, e o trabalho intelectual é recompensado pelo mais intensos deleites. Não é a esperança do céu que me impede de mergulhar naquilo que é tecnicamente conhecido como uma vida de prazeres; é simplesmente o meu temperamento. Acontece que eu considero a vida de prazeres chata e dolorosa. E eu a consideraria chata e dolorosa mesmo se ficasse provado para mim de forma irrefutável que o meu destino era ser extinto ou, pior, sobreviver sob a forma de uma sombra soltando guinchos e algaravias - como uma das ´cabeças fracas´, na expressiva formulação de Homero. Nekuôn amenêna karêna - as cabeças fracas dos mortos. As pessoas que já compareceram a sessões espiritualistas irão concordar que a descrição é dolorosamente precisa." Guinchos e algaravias em "Música na noite & outros ensaios", págs. 85-86.

Esses infantes rebeldes

         Aos moralistas preocupados com os infantes rebeldes e deseducados, segue um trechinho com alguns séculos

"...Vê-se claramente que, mal a criança abandona as fraldas, levanta a mão dando mostras de querer se vingar de quem, a seu parecer, lhe ofende e quase a primeira palavra articulada que fala é chamar de puta a ama ou a sua mãe." Berganza em " O Colóquio dos Cachorros", Miguel de Cervantes.

Outro trechinho para a galerinha ciosa em apontar o dedo e exortar a conduta correta...

"...O que eu fiz não foi impor uma lei, mas prometer que morderia a minha língua quando murmurasse. Agora as coisas não seguem mais o rigor de antigamente: hoje se faz uma lei e amanhã se rompe com ela, e talvez, seja conveniente ser assim. Hoje, alguém promete livrar-se dos seus vícios e, rapidamente, cai em outros maiores. Uma coisa é admirar a disciplina e outra é segui-la e, com efeito, do dizer ao fazer há um bom percorrer. Que o diabo se morda, porque eu não quero me morder nem fazer finezas atrás de um tapete, onde não sou visto por ninguém que possa admirar minha honrada determinação." Berganza em "O Colóquio dos Cachorros", Miguel de Cervantes.

domingo, 4 de janeiro de 2015

A mesma mentalidade de sempre

              O livro, “Três mulheres de três pppês”, de Paulo Emílio Sales Gomes é uma preciosidade, pouco conhecido, não é desses recomendados na mídia, não sei se nas faculdades de Letras o mesmo é recomendado. A verdade é que o conheci através de um artigo de Roberto Schwarz, no livro, “As ideias fora do lugar”. Obviamente Schwarz destaca a qualidade da construção textual, seus aspectos formais, chegando ao final do texto a afirmar tratar-se da melhor prosa produzida desde Guimarães Rosa.
                “Três mulheres de três pppês” é uma construção narrativa magistral, entretanto gostaria de destacar os trechos onde ele faz uma crônica da mentalidade paulista no período entre 1930 e 1970. Os sonhos de uma classe média endinheirada, seus delírios de arrogarem o destino do país; a defesa de uma pureza moral que não resiste uma análise da sua vida hodierna; e o racismo velado que se mostra bem vestido em trajes de progresso econômico.
                Destaco um trecho, um pouco longo, em que vemos a junção de todos estes aspectos presentes na mentalidade paulista, onde o marido compreende as razões de sua esposa, Hermengarda, em odiar seu texto, “Louvor à dama paulista”, por recordar-lhe uma situação de extrema humilhação.


xxx

               
                “Hermengarda conta admiravelmente bem a dolorida lembrança da meninice em Campinas. Foi durante a Revolução Constitucionalista. Políticos e militares importantes tinham ido às escolas campineiras fazer discursos e lançar a campanha do ouro para a vitória. Até crianças foram mobilizadas para recolher de casa em casa moedas e alianças a fim de que São Paulo pudesse pagar os aviões e canhões que deveriam assegurar a invencibilidade das nossas tropas. Hermengarda foi especialmente – maliciosamente – encarregada pela professora de visitar um velho telegrafista italiano, seu vizinho. O neto era seu companheiro preferido nos brinquedos da calçada com as outras crianças do bairro. Os adultos os chamavam de namoradinhos. O velho recebeu a menina afetuosamente e riu muito quando ouviu o pedido. Dirigindo-se a um seu amigo presente, disse que era tarde demais, São Paulo já estava frito e enfarinato. O que as professoras deviam fazer era obrigar as crianças a estudar ao invés de encherem suas cabecinhas ocas com bobagens de políticos e militares delirantes com suas revoluções absurdas, condenadas ao fracasso. Hermengarda achou esquisita a opinião do avô de seu amiguinho mas desempenhou conscienciosamente sua missão. Na escola, seu relatório era o mais esperado e começou a falar no silêncio de uma sala apinhada. A notícia de que o velho recusara trocar as alianças de viúvo pelas patrióticas argolinhas de zinco foi recebida por um murmúrio desaprovador que se transformou em alarido indignado quando ela, na mais total inocência, transmitiu o recado de que São Paulo estava frito e enfarinato. Sentiu a pobre menina que as vaias eram também para ela, mas não entendia por quê. Severa, perguntou-lhe a professora o que pretendia fazer de agora em diante, mas a pequenina Hermengarda ficou muda, sem entender. A intrépida mestra voltou à carga, queria saber se a menina voltaria a pôr os pés na casa do telegrafista. Procurando atenuar o clima de hostilidade, Hermengarda afirmou que faria o que a professora mandasse. Esta riu sem simpatia e insistiu, queria saber se a menina pretendia ainda continuar brincando com seu “namoradinho”. Houve um rumor na sala como se a vaia estivesse prestes a recomeçar. A pequenina acusada teve vontade de chorar diante da inesperada pergunta e foi sufocando os soluços que respondeu afirmativamente, vermelha como uma romã. A vaia foi terrível mas a diretora impôs silêncio e a professora pôde fazer um exaltado discurso de acusação contra toda a família do velho telegrafista. Eram ditatoriais conhecidos, nomeados para polpudos empregos pelo interventor da Ditadura em São Paulo, o Coronel Manuel Rabelo, “o amigo dos mendigos”, frisou sarcasticamente. Esses “mendigos” eram flagelados nortistas ou estrangeiros que o grande coração da família paulista recebera. E agora cuspiam no prato estendido como esmola o escarro da traição, aboletados em postos de responsabilidade, um na coletoria, outro na prefeitura, um terceiro na portaria do Paço Municipal sem falar no irmão mais velho que fazia café na polícia, o que explicava a impunidade de todos. O pior era o telegrafista que além de estrangeiro, ditatorial e anarquista, passava as noites ouvindo a rádio do Rio de Janeiro e os dias espalhando pela cidade os boatos do inimigo.

                A Sentinela Campineira divulgou com destaque a assembleia da escola, transcrevendo as principais passagens dos discursos, inclusive as palavras da menina com a informação de que São Paulo estava frito.  A família de minha futura esposa guardou o número desse jornal que Hermengarda, já mocinha, muitas vezes releu chorando. O único pormenor que o repórter omitia foi a última resposta de Hermengarda ao encerrar-se a reunião. Pressionada pela diretora a dizer lealmente diante de todos o que faria de agora em diante, a menina, exausta, limitou-se a declarar que pretendia sim continuar brincando com o menino. As colegas deram-lhe as costas e no dia seguinte a professora pediu aos pais que a tirassem da escola. Apesar de assustados com a prisão do velho telegrafista e do cafeteiro da polícia, os pais de Hermengarda permitiram que as crianças continuassem a se ver, mas no quintal para não sofrerem vexames por parte das velhotas mais exaltadas que caçavam vítimas para atormentar. Já em meados de setembro, as crianças puderam voltar a jogar amarelinha na calçada: a Força Pública Mineira se aproximava de Campinas e as velhotas nas igrejas implorando a paz a qualquer preço.” Três mulheres de três pppês”, Paulo Emílio Sales Gomes. São Paulo: Cosac y Naify, 2007. Páginas 62-64.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Dilemas da classe média paulista em meados do século XX

             O esplêndido livro, "Três mulheres de três pppês", de Paulo Emílio Sales Gomes faz um retrato cruel da visão de mundo da classe média alta paulista. Para alguns, pode parecer ultrapassado se o usarmos como referência para compreender a elite paulista atual, mas uma leitura atenta pode concluir pela atualidade do retrato feito por Paulo Emílio Sales Gomes.

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"Trabalhar o dia inteiro para aumentar o patrimônio. Uns dois filhos. Alguma aventura que se oferecesse seria acolhida, algo ocasional, sem perigo de continuidade. Em suma, meus sonhos juvenis de suprema elegância, poder e cultura, tinham se reduzido a um nível bem paulista. Nesse quadro amável, esboçado pela imaginação, antegozava os serões dedicados a leituras militares e políticas, minha especialidade amadorística. Também poderia escrever um pouco, resquício amortecido de outra antiga veleidade." Marido de [H] Ermengarda. Editora Cosac y Naify, pág. 40.

[Os dilemas de um liberal conservador nos idos de 1960...]
"...Sou um liberal conservador, respeito a tradição alheia mas em matéria de família sou subversivo e não suporto a minha. Seria capaz de entregar a Ela a metade do que tenho só para evitar que eles ficassem sabendo do desquite e se divertissem com isso. E olhe que essa metade era uma fortuna depois da subida em flecha das ações da Petrobras que comprei tremendo de medo pois corria que era coisa de comunista. E vá se confiar nos jornais!..." Polydoro. pág. 112