Há
alguns anos comecei a leitura de um dos livros do jornalista Roberto Muggiati,
na época ouvia jazz com afinco e tentado estava por conhecer a história dos
Marsalis. Uma década se passou, e retomando as minhas audições de jazz resolvi
buscar novas informações sobre a história do jazz. Na pesquisa encontrei o
livro, Improvisando Soluções (Editora
BestSeller, 2008), descrito no site como um livro que apresenta pequenas
biografias dos mestres do jazz. Encomendei o livro, ao chegar deparei-me com o
subtítulo estampado na capa, “o jazz como exemplo para alcançar o sucesso”.
Então pensei, cometi um equívoco, o livro não deve ser bom. Para minha surpresa
após iniciar a leitura senti grande prazer, muitas informações interessantes,
nada de pedantismo e uma organização dos tópicos muito clara e sem passagens
maçantes.
Segue
um dos trechos sobre Chet Baker, onde se fala de sua temporada com Charlie
Parker.
***
Chet Baker
O sopro e a voz do cool
“[...]
Sua primeira grande oportunidade surgiu no verão de 1952. Ele mesmo conta, no
livro Memórias perdidas:
“Um dia cheguei em casa e encontrei um telegrama
debaixo da porta. Dizia que Charlie Parker estava selecionando um trompetista
para fazer uma temporada com ele na Califórnia. O teste seria naquele mesmo
dia, às três horas, no Tiffany Club. Corri até lá, cheguei um pouco atrasado,
mas consegui ouvir, do lado de fora, Bird desenvolvendo um tema com um
trompetista. Penetrando na escuridão do clube, pude distinguir a figura de Bird
voando nos céus dos blues. Fiquei sentando, por um ou dois minutos, olhando ao
redor. Reconheci muitos trompetistas e um monte de gente que descobria, de
algum modo, que Bird estaria lá. Percebi alguém aproximar-se do palco e dizer
algo a Bird. Fiquei sem graça e muito nervoso quando ele perguntou pelo
microfone se eu estava no clube e se podia subir ao palco e tocar com ele.
Passou por cima de todos aqueles caras na fila – alguns muito mais experientes
do que eu e capazes de ler qualquer partitura que lhes botassem na frente.
Tocamos dois temas: “The Song Is You” e um blues escrito por Bird, “Cheryl”,
que felizmente que conhecia. Quando acabamos o tema, Bird anunciou que a
audição estava encerrada, agradeceu a presença de todos e comunicou que me
escolhera para participar do seu grupo.
Conviveram alguns meses, Parker
como uma espécie de pai, ou irmão mais velho, protegendo o jovem Chet, 22 anos,
dos traficantes. “Toque como eu toco, mas não faça o que eu faço”, dizia Bird,
que morreu como uma espécie de mártir, drogando-se para provar que “as drogas
eram uma droga!”. Naqueles tempos, drogar-se era uma espécie de distintivo de
clube para os músicos de jazz, como beber o era para os grandes escritores
(Hammett, Hemingway, Faulkner, Fitzgerald & cia.). Mal deixou Parker, Chet
formou com o sax-barítono Gerry Mulligan um quarteto-sem-piano e foi atropelado
pela fama com o seu breve, mas conciso, solo de trompete em “My Funny
Valentine”, gravado em setembro de 1952.
A
parceria com Mulligan tornou-se lendária, mas só durou 11 meses. Chet formou então
um quarteto-com-piano, com Russ Freeman, e nas primeiras gravações, já em
outubro de 1953, teve a ousadia de se lançar como cantor, interpretando um tema
do repertório de Frank Sinatra, “I Fall in Love Too Easily”. Nesse mesmo ano,
numa festa em Hollywood, Baker, tocando os acordos ao piano, cantou o belo tema
de Cole Porter “Ev´ry Time We Say Goodbye” em dueto com a cantora June
Christie, enquanto o marido desta, o saxofonista Bob Cooper, os acompanhava
suavemente com o seu tenor. “Soavam como dois anjos cantando”, lembra o
fotógrafo William Claxton, que ajudou com suas câmeras a construir a imagem de
Baker como “ícone do cool”. Claxton, Christy e os demais convidados insistiram
para que Chet gravasse um disco só de vocais. O que não demorou a acontecer: em
15 de fevereiro de 1954 – um dia depois do Valentine´s Day, Dia dos Namorados
nos EUA – Chet gravara “My Funny Valentine” e outros sete standards que fariam
parte do LP de dez polegadas Chet Baker
Sings.
Na verdade, o
fascínio de Chet pelo canto vinha da infância, quando acompanhava os cantores
que ouvia no rádio de casa. Sua mãe, Vera, adorava sua voz, embora ainda soasse
aguda como a de um menino de coro. Começou a arrastar o filho para concursos de
calouros infantis, em que competia com sapateadores, acordeonistas novatos e
cantores á moda tirolesa. A própria Vera escolhia o repertório: canções de amor
um tanto maduras para a um garoto de 12 anos. A saxofonista Diane Vavra,
companheira de Baker nos seus últimos anos, comentou: “Talvez houvesse algum
componente edipiano na cosia, porque sua mãe lhe ensinava todas aquelas letras
fortemente erotizadas.” Anos depois, Baker queixou-se a um pianista amigo que
aquilo o incomodava, muitas crianças caçoavam dele e diziam que soava como uma
menina. Mas isso não o impediu de atirar-se de corpo e alma à carreira de
cantor, aos 24 anos, para o resto da vida.
No início, sua
voz juvenil e afeminada foi muito criticada: alguns depreciaram sua afinação
instável, sua voz “pequena”, as vogais caipiras (thuh por the, wull por well), o recurso de respirar entre as palavras. Mas sua
interpretação transmitia um sentimento tão intenso de fragilidade e inocência
que acabou superando todas as críticas. Chet não tinha vergonha de cantar como
uma Billie Holiday, assumindo seu lado feminino – a sua anima, no jargão junguiano da época. O álbum Chet Baker Sings em pouco tempo chegou ao Brasil e exerceu um papel
fundamental nos anos de formação da bossa nova. Suas entonações vocais e ao
trompete ensinaram muito aos jovens da classe média que tentavam criar uma
linguagem musical mais em sintonia com a vida urbana que levavam. João Gilberto
não só criou um estilo vocal a partir de Chet Baker, como venceu sua timidez e
conquistou a jovem Astrud, convidando-a para duetos vocais com Chet na vitrola
cantando “There Will Never Be Another You”.
Quando Chet veio ao Brasil pela primeira e única vez –
para apresentar-se no primeiro Free Jazz Festival, em 1985 –, tive a
oportunidade rara de conversar com ele à beira da piscina do Hotel Nacional
durante quase uma hora. Na verdade, não foi bem uma conversa. Eu tentava
arrancar declarações definitivas e Chet, pausadamente, olhava para o passado em
câmara lenta, cansado, o rosto vincado de rugas, a boca e os dentes
desfigurados por uma surra que levou de traficantes ainda nos anos de 1960, um
fantasma do belo jovem que fora comparado a James Dean e chegara até a fazer
filmes em Hollywood e na Itália. Mas, dentro daquele corpo precário, que já
namorava com a morte, eu senti uma alma íntegra como poucas. Chet foi generoso
com sua música, gravou muitos discos de graça em clubes noturnos, às vezes sem
saber que estava sendo gravado, outras vezes em troca do pico da hora,
simplesmente porque fazer música era, mais do que sua grande paixão, sua
própria razão de ser. Totalmente desapegado dos bens materiais, morando em
hotéis – adorando apenas carros velozes –, foi talvez o mais autêntico dos beats, muito mais do que intelectuais
emocionalmente travados como Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Chet Baker ofereceu
ao mundo – ainda oferece –, ao lado de Billie Holiday, Charlie Parker, Lester
Young e John Coltrane, nesses tempos de aridez espiritual, um legado de rara
beleza e liberdade.” (Improvisando
soluções. Roberto Muggiati. Best Seller.pp.133-137