Mário de Andrade em resenha sobre o livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, fez uma crítica muito interessante e atemporal quanto a certa romantização da miséria humana. Romantização literária que esvazia o sofrimento humano, ao invés de denunciá-lo. A resenha foi escrita em 1930, e depois compilada no livro, Táxi e crônicas no Diário Nacional.
“...
O defeito da arte é mesmo transportar os maiores horrores da humanidade e da
Terra pra um plano hedonístico, tão contemplativo e necessariamente diletante,
que a gente está chorando na leitura e não sofre nada. Chora que é uma
gostosura. As dores de fundamento estético, por mais suicídios que tenha
causado o Werther, não fazem mal pra
ninguém. Pelo contrário: desvirtuam a nossa humanidade, literatizam nossos
deveres humanos que em vez de se tornarem ativos e eficientes, se desmancham
nas misérias das frases bonitas, na recordação das obras de arte e em piedades
oratórias. Estou convencido que o livro de Euclides fez um mal enorme pros
brasileiros e dificultou vastamente o problema das secas. Fez da seca uma obra
de arte, e nós adquirimos, por causa dele, uma noção tangencial dos nossos
deveres pra com o Nordeste, uma noção derivada, quase que de função puramente
literária. A seca virou bonita e nos nossos deveres, a própria consciência dos
nossos deveres, ficaram bonitos também. Quase existe dentro de nós uma razão
importantíssima e jamais expressa:
Deixem a seca como está porque se o problema dela for resolvido, o
brasileiro perde a mais bonita razão pros seus lamentos e digressões
caritativas. Desconfio que nenhum brasileiro terá coragem de confessar a
desumanização de origem artística causada nele pela maravilhosa literatice de
Euclides da Cunha, mas, queiram ou não queiram, os fatos estão aí provando esta
afirmativa urtigante...” Retirado da fortuna crítica ao livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, 105 ed. p.172-173