domingo, 4 de setembro de 2016

Lima Barreto contra a biopolítica e o saber-poder de sua época

               A crônica que segue foi publicada em 07 de maio de 1921, na Revista Careta, número 672, assinada por Jonathan, pseudônimo usado por Lima Barreto. A crônica foi reunida no volume recém pública pela Companhia das Letras, Sátiras e outras subversões. A crônica é encontrada nas páginas 281 a 283.

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A bordo do Herschel

                 Há dias, a bordo de um paquete inglês Herschel, houve um grande charivari, por causa do desembarque de um passageiro. A coisa vem contada nos jornais e é de um cômico irresistível. Houve um conflito de jurisdição entre os médicos da Saúde Pública e a polícia; e - coisa curiosa! - quem tinha razão era esta última.
               O passageiro era paralítico; e, como a paralisia é moléstia contagiosa, a ditadura médica que, entre nós, se esboça, em Harvard, conforme os trabalhos profundos do cônsul Hélio Lôbo, determinou que o tal homem não desembarcasse.
                Acontece que o pobre homem era casado, no Brasil, e tinha filhos brasileiros - coisa que ele, por seus procuradores, provou plenamente perante o chefe de polícia, a autoridade competente no assunto; mas como os médicos, especialmente os do Brasil, receberam o dom divino de possuírem as leis eternas e imutáveis que regem a vida e a morte, não podendo, por isso, se submeterem a ´borra-botas´ (sic)  que não são médicos, os da Saúde Pública resolveram contrariar a ordem do chefe de polícia, não permitindo o desembarque do pobre homem. Houve chinfrim e bate-boca - coisa assaz edificante para a meditação do fleumático inglês que assistia àquela ´guerra civil´ entre autoridades brasileiras.
          O homem embarcou e desembarcou várias vezes; os médicos e os policiais quase se engalfinharam.    
                  É curioso isso, para revelar até a que excessivo ridículo pode levar a verdade profissional. Se fosse um ilitar que se quisesse sobrepor a uma ordem legal, já estaríamos nós a gritar contra o militarismo, a prepotência dos homens de farda etc, etc.; mas foi um médico e médico oficial, um simples médico da Saúde Pública que se arrogou possuir uma autoridade superior que nenhuma lei lhe dá. Ele partiu certamente do princípio de que, pelo simples fato de ser médico, é ... um sábio.
                 Puro engano! Não basta ser médico, para ser sábio; é preciso mais alguma coisa, e essa mais alguma coisa é muito difícil.
                   Enquanto os nossos ´doutores´ não se convencerem  de que eles são simples profissionais como quaisquer outros, e que a distinção que os cerca só é legítima quando partida do consenso geral, não ficando eles por isso acima das leis comuns, a nossa democracia é uma burla. Não existe quando há uma classe privilegiada, mesmo que essa seja a de ´doutores´. 
                 Se o doutor da Saúde Pública fosse mesmo um sábio e não um estreito medicozinho confinado, não na medicina, que é tão vasta que ninguém nela se pode confinar, mas no diploma e no anel, saberia disso e não desprezaria a autoridade dos ´borra-botas´ que não ´alisaram os bancos de uma Academia´. 
                    Nós, até no próprio Rio de Janeiro, estamos muito eivados dessa ´superstição doutoral´ que nos legou o Império. É preciso combatê-la, mesmo no interesse dos verdadeiros profissionais que para tais ofícios foram por vocação; e que são, entretanto, prejudicados por centenas de outras que a elas açodem, por vera vaidade do realce que o título, chamado científico, dá no nosso meio.  Estes constituem  uma espécie de guarda nacional doutoral...
                  Quando essa superstição desaparecer, o ensino superior subirá de nível e a mentalidade, em geral, dos brasileiros não será só por fim receber, no Aloisio de Castro ou no Herculano de Freitas, a crisma enobrecedora do prenome ´doutor´. O título terá outra significação, muito mais útil e mais digna; e estou bem certo de que não se passarão mais ridículos espetáculos semelhantes a este de bordo ao Herschel, tendo por teatro a carinhosa e tranquila beleza da Guanabara que a antiquada das montanhas que a cercam, quase tão antigas quanto a Terra, ainda mais tranquila a torna, na sua convicção de imortalidade.