quarta-feira, 6 de dezembro de 2017




          O novo romance de Milton Hatoum é muito bom, além da narrativa envolvente, os bons diálogos,e desfazendo-se de uma característica antiga, o autor reduz as descrições, produzindo um texto enxuto. Aqueles que tiveram algum contato com o Distrito Federal poderão recorrer a sua memória afetiva.
      Não se trata de um romance estritamente político, apesar de tratar do tema, não há no romance uma obrigação panfletária, o protagonista e narrador, Martim, é mais um envolvido pelos acontecimentos políticos do que atua como um militante político. Encontramos entre os personagens: Collor, Golbery, Honestino Guimarães e outros. Obviamente todos sob alguma alcunha. Deixo duas passagens que bem expressam os ecos do nosso eterno presente no romance:

"Quando falam baixo, não escuto a conversa; às vezes não entendo tudo. Numa discussão tensa, um deputado perguntou ao Galindo: ´O que você prefere: um governo rígido mas honesto num Brasil próspero, ou um regime comunista totalitário num país estagnado?´
O velho gaúcho respondeu com uma segurança serena: ´Uma rede de criminosos que rasgou a Constituição pode ser chamda de governo honesto e rígido?´" pág. 151

"Minha biblioteca, Martim. Cada estante tem uma história. Os livros dessa estante de baixo foram salvos da fogueira. Dois estudantes queriam queimar todos os livros doados pelo embaixador dos Estados Unidos. O líder desse grupo é um magricela do curso de arquitetura, aquele lourinho que estudou no Elefante Branco e passou a noite com a gente na delegacia. O caria queria tocar fogo em tudo. Tirei uns livros da fogueira, ganhei eterna inimizade com esse grupo incendiário. Mas ganhei também peças de Tennesse Williams, a poesia de Walt Whitman, romances e contos de Faulkner. Todos chamuscados, mas dá pra ler..." pág. 132
       Os presentes dos amigos sempre têm prioridade na fila de leitura. Então, meu caro Ademir Luiz iniciei a leitura do Kundera, e quando encontramos pontos de confluência com o autor a leitura se torna ainda melhor. E penso que neste ponto, eu, você e o Kundera não divergimos. Ou seja, condenamos essa visão tosca que busca no artefato literário uma cópia da realidade associada a nova moralidade dos nossos tempos, o puritanismo "progressista".
          Segue um trecho que bem exemplifica a pobreza de quem quer ler um romance como uma epístola moral. Kundera busca nos primórdios do romance algo fundamental que está sendo esquecido.
"... É nessas passagens que o livro de Rabelais torna-se plena e radicalmente romance: a saber: TERRITÓRIO EM QUE O JULGAMENTO MORAL FICA SUSPENSO."
"Suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral. A moral que se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender. Essa fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto do vista da sabedoria do romance, a asneira mais detestável, o mal mais pernicioso. Não que o romancista conteste, no sentido absoluto, a legitimidade do julgamento moral, mas ele o envia para além do romance. Aí, se der vontade, acusem Panurge por sua covardia, acusem Emma Bovary, acusem Rastignac, isso é com vocês; o romancista não pode fazer nada"
"A criação do campo imaginário em que o julgamento moral fica suspenso foi uma proeza de imenso valor: somente aí podem desabrochar os personagens romanescos, ou seja, os indivíduos concebidos não em função de uma verdade preexistente, como exemplos do bem ou do mal, ou como representações de leis objetivas que se confrontam, mas como seres autônomos fundamentados em sua própria moral, em suas próprias leis. A sociedade ocidental criou o hábito de se apresentar como a dos direitos do homem; mas antes que um homem possa ter direitos, ele deve constituir-se como indivíduo, considerar-se como tal e ser considerado como tal; isso não poderia ter acontecido sem uma longa prática das artes europeias e especialmente do romance, que ensina o leitor a ter curiosidade pelo outro e a tentar compreender as verdades que diferem das suas..." Os Testamentos Traídos, Milan Kundera
"Sob a superfície do curso, raso e ligeiro,
do que dizemos que sentimos; sob a corrente,
assim ligeira, do que pensamos que sentimos - ali flui
em silenciosa torrente, obscura e profunda,
a central corrente do do que deveras sentimos."


Matthew Arnold