quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Papéis, máscaras que nos automatizam

          Ler Faulkner é um dos prazeres a que me permito pelo menos duas vezes ao ano, ou na velocidade em que as editoras reeditam ou traduzem suas obras, ora pela Cosac y Naify, ora pela Benvirá. Da primeira editora, Sartoris foi o último lançamento, lido em 2011. No entanto, a Cosac y Naify não lançou mais nada de Faulkner. Agora, no ano de 2012, a editora Benvirá tem promovido uma série de reedições de obras já traduzidas, das quais destaco O intruso. Romance sobre um negro que por se mostrar altivo e independente, passa a incomodar uma comunidade branca no sul dos Estados Unidos. Os acontecimentos ocorrem no Condado de Yoknapatwapha, imortalizado por Faulkner em suas obras.
         O trecho que selecionei é uma amostra de como as práticas racistas se perpetuam não somente pela forma que nos são impostos os papéis a serem desempenhados, mas também, como continuamos a desempenhar estes papéis, engolfados numa segunda natureza. Mesmo aqueles oprimem tem suas práticas rotinizadas.

***
           "'Acho que eles já sabem que podem contar com o senhor, senhor Lilley', seu tio disse. E eles foram em frente. 'Vê só?', seu tio disse.'Ele não tem nada contra o que ele chama de negros. Se perguntarem, provavelmente vai dizer que até gosta mais dos negros que de alguns brancos que conhece, e ele acredita nisso. Provavelmente eles sempre estão afanando alguns centavos aqui e ali na venda dele e provavelmente até levando coisas - caixinhas de chiclete ou de anil ou uma banana ou uma lata de sardinhas ou dois cordões de sapatos ou um vidro de brilhantina - por baixo dos aventais e casacos e ele sabe disso; provavelmente ele até dá aos negros umas coisas de graça - os ossos e acarne que estraga na geladeira e a banha  e as balas que estragam. Tudo que exige é que eles se comportem  como negros. Que é exatamente o que o Lucas fez: perdeu a cabeça e assassinou um branco - que é provavelmente o que o senhor Lilley está convencido que todos os negros querem fazer - e agora os brancos vão pegá-lo e queimá-lo, tudo como de costume e em ordem, e os próprios brancos vão se comportar exatamente como ele está convencido que o Lucas gostaria que se comportassem: como brancos; todos observando implicitamente as regras: o negro agindo como um negro e os brancos agindo como brancos e nenhum sentimento real e forte de nenhum lado (já que o senhor Lilley não é um Gowrie) depois que o furor passar; de fato o senhor Lilley seria provavelmente um dos primeiros a contribuir com dinheiro para o enterro do Lucas e o amparo da viúva e dos filhos se ele os tivesse. O que prova mais uma vez que ninguém pode fazer mais mal que o mal que se agarra às cegas aos vícios de seus antepassados." (O intruso, Faulkner, 2012, Benvirá, p.54-55) 



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Orwell atualíssimo

            Nos últimos dias tenho tido vários momentos de leitura prazerosa com G. Orwell, principalmente dos ensaios presentes na coletânea, "Como morrem os pobres e outros ensaios" (Cia das Letras). Para quem veio da tradição jornalística, os textos de Orwell permanecem atuais, contrariando a  ideia de que os textos para periódicos do ramo tem validade curtíssima.
             Percebe-se que a preocupação de Orwell com a divulgação do bom romance, do incentivo a leitura e de como os críticos literários tornaram-se presa fácil de um sistema bancado por editores. Em outro texto, ele constatava já em 1943, que os meios de comunicação de massa não tem nenhuma preocupação com a divulgação da literatura.

 ***

            "Tudo isso é óbvio. O que acho um pouco meno óbvio é o modo como chegamos à atual situação. À primeira vista, a chantagem do livro é um embuste bastante simples. Z escreve um livro que é publicado por Y e resenhado por X no "Semanário W". Se a resenha for ruim, Y retirará seu anúncio, então X tem de falar de uma "obra-prima inesquecível" ou será demitido. Essencialmente, esta é a situação, e a resenha de romances afundou no poço atual em grande medida porque cada resenhista tem um editor ou editores segurando-o pelo rabo por procuração. Mas a coisa não é tão grosseira quanto parece. As várias parte do embuste não agem conscientemente juntas e foram forçadas a assumir sua posição atual em parte contra a própria vontade." (ORWELL, "Em defesa do Romance", In.: Como morrem os pobres e outros ensaios. p. 114-115)

            "[...] Do modo como estão as coisas, embora a BBC mantenha um interesse ainda que fraco pela literatura contemporânea, é mais difícil obter cinco minutos no ar para transmitir um poema do que doze horas para disseminar propaganda mentirosa, música enlatada, piadas velhas, 'discussões' fingidas ou o que mais você quiser. [...]" (ORWELL, "A poesia e o microfone", In: Como morrem os pobres e outros ensaios. p. 131)
           

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A corrida contra o relógio

              A vivência trágica na maioria das vezes é paralisante, mas no caso do historiador brasilianista Kenneth Serbin  tornou-se motivação enfrentar o seu destino e ajudar os outros que compartilham da mesma doença. Este relato prenhe de humanidade, e sim, que enxerga nas ciências um esteio para que sejam enfrentados os mais diversos problemas é um exemplo para muitos pesquisadores e profissionais das ciências humanas que tendem desdenhar das das outras áreas do conhecimento humano.


xxx

16/12/2012 - 08h00

A corrida contra o relógio genético

KENNETH P. SERBIN

ESPECIAL PARA A FOLHA


Acadêmicos volta e meia mudam de foco ao longo da carreira e se entregam a uma nova descoberta, um novo emprego ou à mera necessidade de mudar de assunto. Comigo, isso aconteceu ao descobrir que, em algum momento, vou desenvolver uma doença cerebral apavorante, intratável e fatal.
A descoberta de que carrego o gene da doença de Huntington me forçou a reavaliar minha vida e carreira, me impôs um novo papel de ativista (embora, de início, exercido sob pseudônimo) e me lançou numa luta que pode afetar minha própria sobrevivência.
Minha especialidade de longa data como pesquisador é a história brasileira moderna. Mas, sem alarde e com convicção crescente, comecei a me envolver num segundo campo uma área que engloba ciência, tecnologia e medicina, em busca de avanços que possam salvar a mim, a outros 30 mil americanos afetados por essa doença medonha e a estimados 150 mil a 250 mil outros que podem desenvolvê-la. No Brasil, calcula-se que os portadores do gene sejam algo entre 13 mil e 19 mil, e que outros mais, de 65 mil a 95 mil pessoas, correm o risco de ter o gene.
A doença de Huntington carrega um estigma, não por ser contagiosa ou indicativa de comportamento dissoluto não é uma coisa nem outra, mas porque seus sintomas assustadores são os de uma doença herdada. Os nazistas teriam esterilizado à força até 3.500 pessoas afetadas pelo mal e, nos EUA, onde a esterilização involuntária continuou a ser praticada até a década de 1960, os defensores da eugenia preconizaram o procedimento também para os portadores de Huntington.
Filhos de pai ou mãe com doença de Huntington têm 50% de chances de herdar o gene mutante que causa o mal. Qualquer pessoa que tenha o gene vai desenvolver a doença em algum ponto, geralmente entre os 35 e 55 anos de idade. Não há cura ou tratamento.
Por anos, preocupado com os riscos profissionais e sociais que poderia correr se revelasse minha condição de portador do gene, fui um ativista de bastidores, assinando como Gene Veritas, nom de plume sob o qual sou bastante conhecido na comunidade ligada à doença de Huntington, graças a meu blog (curehd. blogspot.com).
Hoje, culminando um processo longo e doloroso de sair do armário, quero assumir em público minha história, para combater o estigma e o medo que cercam a doença de Huntington e outros distúrbios neurológicos. Com isso, espero ainda ajudar a obter mais apoio a pesquisas sobre o cérebro.
DIABO
Essa jornada começou no dia seguinte ao Natal de 1995, quando soube que minha mãe, Carol, tinha Huntington. Com a notícia, veio a compreensão deprimente de que ela estava fadada a morrer do mal já descrito como o diabo de todas as doenças.
A doença produz uma tríade pavorosa de anomalias motoras, cognitivas e comportamentais que se assemelham aos males de Parkinson, Alzheimer e a distúrbios psiquiátricos. Fiquei sabendo que, quanto mais pronunciada a mutação, mais cedo a doença se manifesta. E que um homem pode transmitir uma mutação muito mais grave que uma mulher, levando a doença a se manifestar precocemente em seus filhos, até mesmo na primeira infância.
Na época, ainda faltavam quatro anos para eu ter uma cadeira estável na Universidade de San Diego. Com medo de perder o plano de saúde e o emprego de professor assistente, não contei a quase ninguém sobre a minha situação. Temia a reação dos meus colegas ao saber que um intelectual como eles pudesse ter o cérebro geneticamente comprometido. E adiei os exames genéticos de previsão.
Durante vários anos refleti sobre o assunto, só com minha mulher, Regina, itabirana que foi criada no Rio, e com um grupo de apoio da seção de San Diego da Sociedade Americana da Doença de Huntington. Em meados de 1999, com Regina querendo muito que tivéssemos filhos, decidi me submeter aos exames.
Ficamos atordoados ao descobrir que eu tinha a mutação.
Quase sem saber como reagir, e cientes de que, assim como foi com minha mãe, eu, perto dos 40 anos, estava correndo contra meu relógio genético, seguimos estoicamente adiante com nosso plano de procriar. Regina não demorou a engravidar. Durante quatro meses lancinantes, até termos o resultado do exame genético, aguardamos para saber o destino da vida nova que crescia em seu ventre.
Na medida do possível, concentrei-me em concluir o meu primeiro livro e em me preparar para a obtenção da cadeira estável. Ficamos especialmente preocupados ao pensar que Regina, longe de sua família, talvez tivesse que cuidar tanto do marido quanto de um filho com a doença de Huntington.
Nossa angústia enfim deu lugar a alegria quando soubemos que nosso bebê-milagre estava livre do gene da doença. Bianca nasceu saudável em 26 de junho de 2000.
À noite e nos fins de semana, mergulhei no trabalho voluntário no conselho da seção de San Diego da Sociedade da Doença de Huntington. Defendendo um maior ativismo, ajudei a escrever um colóquio bipartidário sobre a doença, que apareceu no Congressional Record. Em viagens de pesquisa ao Brasil, tive contatos com a então nascente Associação Brasil Huntington, fundada em 1997.
Como editor do Conquest, o boletim da seção de San Diego, e valendo-me da perspectiva humana conquistada em meus estudos sobre o Brasil, explorei por sete anos as profundezas assustadoras e os anseios esperançosos da comunidade de Huntington. Escrevi editoriais contra a discriminação genética e a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Para conhecer melhor os aspectos científicos e lidar melhor com meu medo, redigia atualizações regulares sobre as pesquisas no campo. O Conquest começou a alcançar doadores de destaque justamente quando inauguramos um evento de gala em apoio ao novo centro de serviços familiares da sociedade em San Diego. Mas meu nome não aparecia no boletim.
Refletindo sobre como divulgar a doença sem divulgar meu nome, decidi lançar um blog sob um pseudônimo que significa a verdade em meus genes.
Meu nome é Gene Veritas e corro o risco de desenvolver a doença de Huntington, escrevi em 10 de janeiro de 2005. Nos últimos oito anos, em mais de 140 artigos, abri o meu coração, falando das dificuldades enfrentadas por minha família e entrevistando cientistas. Documentei a dolorosa experiência de viver na zona cinzenta entre o resultado de um exame genético e a chegada da doença que o exame previu ao mesmo tempo que se aguarda com ansiedade a descoberta de um tratamento eficaz.
DESVIOS
A doença de Huntington acabou desviando minha vida do rumo desejado em inúmeras ocasiões. Em meados de 2005, minha mãe foi internada numa clínica para doentes terminais. À medida que ela perde a capacidade de engolir, a morte se aproxima, escrevi para uma médica amiga, falando de minha preocupação crescente com o futuro de minha mãe e o meu.
Será que vou ver minha filha se apaixonar e fazer faculdade? O suicídio pouparia minha família de um peso exaustivo e financeiramente ruinoso. Eu não sofreria como os pacientes de Huntington que vi numa clínica, contorcendo-se sem controle, usando fraldas, amarrados com cintos a cadeiras especiais ou confinados em quartos com paredes acolchoadas. Mas, se me suicidasse, minha filha ficaria arrasada.
Minha mãe morreu dormindo em 13 de fevereiro de 2006. Tinha 68 anos. Profundamente abatido, achando que eu seria o próximo a apresentar a doença, levei quase um ano para reconquistar meu equilíbrio emocional, enquanto conseguia presidir a Associação de Estudos Brasileiros.
Em 2007, numa decisão dolorosa que transformou minha carreira, recusei um trabalho em que eu ajudaria a comandar o excelente Centro para a América Latina na Universidade Internacional da Flórida para ficar em San Diego, um centro de biotecnologia.
Prevendo meu deslocamento em direção à história da ciência, valorizei a flexibilidade intelectual de minha universidade, uma instituição privada de ciências humanas. O mais importante de tudo foi que ficar na Califórnia permitia que Regina mantivesse seu cargo de professora, relativamente bem pago, que seria nosso esteio financeiro se eu ficasse incapacitado.
Naquele ano, quando a agência de pesquisas com células-tronco aprovada pelos eleitores da Califórnia, com verba de US$ 3 bilhões, se preparava para emitir dotações para pesquisas, iniciei um trabalho estadual em favor da causa, planejando iniciar apresentações sobre a doença diante do conselho de supervisão da agência.
Desde então, eu e outros ativistas ajudamos a garantir quase US$ 29 milhões para projetos de células-tronco sobre a doença de Huntington. Enquanto isso, uma importante e nova iniciativa de cura da doença de Huntington, um grupo biomédico sem fins lucrativos chamado CHDI Foundation Inc., revolucionou as pesquisas sobre medicamentos contra o mal e, pela primeira vez, envolveu laboratórios farmacêuticos importantes. Finalmente a comunidade de Huntington tem motivos para esperanças reais.
A aprovação da lei federal de saúde e de medidas para proteger da discriminação de empregadores e seguradoras pessoas que detectem distúrbios genéticos me deu coragem para começar a vir a público sobre minha condição.
Em 2011, fiz um discurso de abertura, o mais importante de minha vida, da sexta conferência anual de pesquisas do CHDI, em que expliquei que Gene Veritas era Kenneth P. Serbin e exortei os cientistas a redobrar seus esforços. (O discurso pode ser visto em vimeo.com/19906160)
Com este ensaio, meu primeiro na grande imprensa, dou meu passo decisivo para sair do armário da doença. Agora quero integrar minha atividade em favor da causa e minha paixão recém-descoberta pela história da ciência com minha carreira de brasilianista.
Entrei para a Sociedade de História da Ciência, vou desenvolver um curso sobre a história do cérebro e vou buscar ligações com os novos projetos de minha universidade na área de neurociências e de trabalho social para promover a saúde cerebral como prioridade internacional.
A história da doença de Huntington é a história de nossos tempos. A doença foi uma das primeiras para as quais foi desenvolvido um exame genético. À medida que aumenta o conhecimento sobre outros males, a ética médica precisa ser submetida a uma revisão profunda, e é preciso que surja um movimento pelos direitos genéticos. Tomando emprestada a frase de outro acadêmico, os portadores de genes causadores de doenças são, para mim, os pioneiros morais na fronteira genética.
Com outros grupos latino-americanos, a Associação Brasil Huntington vem tendo papel cada vez mais importante na busca por um tratamento. Em setembro de 2013 o Brasil vai estar sob os holofotes científicos globais, quando o Congresso Mundial sobre a Doença de Huntington for realizado no Rio.
As pesquisas sobre Huntington podem abrir os segredos de milhares de distúrbios genéticos, neurológicos e condições órfãs raras que, juntas, arrasam milhões de pessoas, começando pelas doenças de Alzheimer e Parkinson. Como ilustra especialmente o Alzheimer, é possível ter vida física mais longa, mas será que poderemos viver por mais tempo mentalmente? Esses distúrbios todos impõem uma carga esmagadora às pessoas que cuidam dos doentes.
Estou com 52 anos, a idade em que minha mãe começou a apresentar a doença. Valorizo cada momento de saúde. Ao contemplar meu legado intelectual, incentivo outros a entrarem na corrida para proteger nosso principal recurso natural nossos cérebros e lutar por um mundo em que a ciência conquiste as doenças.
KENNETH P. SERBIN, 52, professor de história da Universidade de San Diego, é autor de "Padres, Celibato e Conflito Social - Uma História da Igreja Católica no Brasil" (Cia das Letras).
Tradução de CLARA ALLAIN.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Octavio Paz nos presenteia com esta bela passagem



        "[...] Ninguém conhece o desenlace final da história, porque o seu fim é também o fim do homem. Mas, não podemos nos demorar nestas perguntas sem resposta, porque a história nos obriga a que vivamos: é a substância da nossa vida e o lugar da nossa morte. Entre viver a história e interpretá-la, vivemo-la: fazemos história; ao vivê-la, interpretamo-la: cada um
 de nossos atos é um signo. A história que vivemos é uma escritura; na escritura da história visível devemos ler as metamorfoses e as mudanças da história invisível. Esta leitura é uma decifração, a tradução de uma tradução: jamais leremos o original. Toda versão é provisória: o texto muda sem cessar (embora talvez sempre diga o mesmo), e daí que, de tempos em tempos, descartem-se certas versões em favor de outras que, por sua vez, tinham sido descartadas antes. Toda tradução é uma criação: um texto novo...[...]" Octavio Paz, Crítica da Pirâmide.
  

Billie Holiday e Strange Fruit


               Toda vez que vejo Billie Holiday cantar, nos vídeos que permaneceram, é perceptível a tristeza nas suas expressões. Mesmo quando sorri, e aqui forço a barra, é um sorriso constrangido. Escrevo isso para ressaltar o quanto foi penoso para el
a ter de explicar o significado de “strange fruit”, música que ela não compôs, mas que foi eternizada em sua voz. “Strange Fruit” não se explica, se sente. E Billie Holiday sentiu mais do que ninguém, pois colocou-se na linha de frente ao interpreta-la. No livro, “Billie Holiday e a biografia de uma canção, Strange Fruit” (Cosac y Naify), de David Margolick percebe-se todos os tormentos pelos quais ela passou junto com a música. 
                Uma passagem muito marcante do livro revela aquela inquietude de Billie. Ela não era uma alienada como muitos diziam, o fundamental é que a sua explicação da música estava nos sentimentos mobilizados ao cantá-la. Mas, quando tenta explica-la, mesmo a pedido de uma criança, há uma verdadeira explosão de raiva, que talvez sempre estivesse com ela. Segue o emocionante relato.

              “Em The Heart of a Woman, Maya Angelou conta como, durante uma visita a Los Angeles em 1958, Holiday cantou “Strange Fruit” para seu filho pequeno, Guy:
           “Billie cantou em tom rouco e seco a famosa canção de protesto. A voz áspera e o fraseado me encantaram. Vi os corpos negros pendurados nas árvores do sul. Vi o sangue das vítimas de linchamento escorrendo das folhas pelos troncos até as raízes. 
               Guy interrompeu: ‘Como pode ter sangue na raiz?’. Fiz cara feia e falei: ‘Fique quieto, Guy, só escute’. Billie continuou por cima da interrupção, a voz vibrando, áspera.
Ela pintava uma cena de uma terra linda, pastoral, bucólica, e acrescentava olhos saltados e bocas retorcidas à paisagem do Sul.
              Guy interrompeu a música. ‘O que é cena pastoral, miss Holiday?’ Billie levantou os olhos devagar, fitou Guy um momento. O rosto dela ficou cruel e quando falou sua voz era cheia de desdém. ‘É quando os crackers matam os pretos. É quando eles pegam um pretinho que nem você, arrancam o saco dele e enfiam goela abaixo. É isso que é.’ 
             A onda de raiva assustou Guy e me deixou pasma.
             Billie continuou: ‘É isso o que eles fazem. Isso que é uma porra de uma cena pastoral’”.
             Um ano depois, Holiday estava morta”
David Margolick. Billie Holiday e a biografia de uma canção, Strange Fruit. p. 111-112.

      "Quantas vezes os homens escaparam das dores dos seus próprios corpos com o auxílio daquele aspecto sentimental da imaginação que sente as dores da carne dos outros como se fossem dores nossas!" Yukio Mishima, Sol e Aço.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Sapatos iluminados

                  A moda dos tênis com luzes não é nova, pelo contrário, é ridícula se comparada com a moda dos jazzistas de Nova Orleans do início do século XX. No depoimento abaixo, Jelly Roll Morton (1890-1941), um dos "inventores" do Jazz nos mostra o que era estar "na moda".  

                "[...] Mas muitos rapazes não usavam sapatos de fábrica. Preferiam os chamados St. Louis Flats e Chicago Flats, feitos com solas de cortiça, sem saltos e com desenhos na ponta. Depois, alguns inventaram de botar pequenas lâmpadas elétricas na ponta dos sapatos e levavam uma bateria nos bolsos, e quando se aproximava uma dona - dessas bobas - eles apertavam um botão no bolso e acendiam as pequenas lâmpadas na ponta dos sapatos e aquela dona era conquistada! É a pura verdade!


terça-feira, 11 de setembro de 2012

domingo, 9 de setembro de 2012

Chet Baker por Roberto Muggiati


            Há alguns anos comecei a leitura de um dos livros do jornalista Roberto Muggiati, na época ouvia jazz com afinco e tentado estava por conhecer a história dos Marsalis. Uma década se passou, e retomando as minhas audições de jazz resolvi buscar novas informações sobre a história do jazz. Na pesquisa encontrei o livro, Improvisando Soluções (Editora BestSeller, 2008), descrito no site como um livro que apresenta pequenas biografias dos mestres do jazz. Encomendei o livro, ao chegar deparei-me com o subtítulo estampado na capa, “o jazz como exemplo para alcançar o sucesso”. Então pensei, cometi um equívoco, o livro não deve ser bom. Para minha surpresa após iniciar a leitura senti grande prazer, muitas informações interessantes, nada de pedantismo e uma organização dos tópicos muito clara e sem passagens maçantes.
            Segue um dos trechos sobre Chet Baker, onde se fala de sua temporada com Charlie Parker.

***
Chet Baker

O sopro e a voz do cool



            “[...] Sua primeira grande oportunidade surgiu no verão de 1952. Ele mesmo conta, no livro Memórias perdidas:

“Um dia cheguei em casa e encontrei um telegrama debaixo da porta. Dizia que Charlie Parker estava selecionando um trompetista para fazer uma temporada com ele na Califórnia. O teste seria naquele mesmo dia, às três horas, no Tiffany Club. Corri até lá, cheguei um pouco atrasado, mas consegui ouvir, do lado de fora, Bird desenvolvendo um tema com um trompetista. Penetrando na escuridão do clube, pude distinguir a figura de Bird voando nos céus dos blues. Fiquei sentando, por um ou dois minutos, olhando ao redor. Reconheci muitos trompetistas e um monte de gente que descobria, de algum modo, que Bird estaria lá. Percebi alguém aproximar-se do palco e dizer algo a Bird. Fiquei sem graça e muito nervoso quando ele perguntou pelo microfone se eu estava no clube e se podia subir ao palco e tocar com ele. Passou por cima de todos aqueles caras na fila – alguns muito mais experientes do que eu e capazes de ler qualquer partitura que lhes botassem na frente. Tocamos dois temas: “The Song Is You” e um blues escrito por Bird, “Cheryl”, que felizmente que conhecia. Quando acabamos o tema, Bird anunciou que a audição estava encerrada, agradeceu a presença de todos e comunicou que me escolhera para participar do seu grupo.

Conviveram alguns meses, Parker como uma espécie de pai, ou irmão mais velho, protegendo o jovem Chet, 22 anos, dos traficantes. “Toque como eu toco, mas não faça o que eu faço”, dizia Bird, que morreu como uma espécie de mártir, drogando-se para provar que “as drogas eram uma droga!”. Naqueles tempos, drogar-se era uma espécie de distintivo de clube para os músicos de jazz, como beber o era para os grandes escritores (Hammett, Hemingway, Faulkner, Fitzgerald & cia.). Mal deixou Parker, Chet formou com o sax-barítono Gerry Mulligan um quarteto-sem-piano e foi atropelado pela fama com o seu breve, mas conciso, solo de trompete em “My Funny Valentine”, gravado em setembro de 1952.
            A parceria com Mulligan tornou-se lendária, mas só durou 11 meses. Chet formou então um quarteto-com-piano, com Russ Freeman, e nas primeiras gravações, já em outubro de 1953, teve a ousadia de se lançar como cantor, interpretando um tema do repertório de Frank Sinatra, “I Fall in Love Too Easily”. Nesse mesmo ano, numa festa em Hollywood, Baker, tocando os acordos ao piano, cantou o belo tema de Cole Porter “Ev´ry Time We Say Goodbye” em dueto com a cantora June Christie, enquanto o marido desta, o saxofonista Bob Cooper, os acompanhava suavemente com o seu tenor. “Soavam como dois anjos cantando”, lembra o fotógrafo William Claxton, que ajudou com suas câmeras a construir a imagem de Baker como “ícone do cool”. Claxton, Christy e os demais convidados insistiram para que Chet gravasse um disco só de vocais. O que não demorou a acontecer: em 15 de fevereiro de 1954 – um dia depois do Valentine´s Day, Dia dos Namorados nos EUA – Chet gravara “My Funny Valentine” e outros sete standards que fariam parte do LP de dez polegadas Chet Baker Sings.
Na verdade, o fascínio de Chet pelo canto vinha da infância, quando acompanhava os cantores que ouvia no rádio de casa. Sua mãe, Vera, adorava sua voz, embora ainda soasse aguda como a de um menino de coro. Começou a arrastar o filho para concursos de calouros infantis, em que competia com sapateadores, acordeonistas novatos e cantores á moda tirolesa. A própria Vera escolhia o repertório: canções de amor um tanto maduras para a um garoto de 12 anos. A saxofonista Diane Vavra, companheira de Baker nos seus últimos anos, comentou: “Talvez houvesse algum componente edipiano na cosia, porque sua mãe lhe ensinava todas aquelas letras fortemente erotizadas.” Anos depois, Baker queixou-se a um pianista amigo que aquilo o incomodava, muitas crianças caçoavam dele e diziam que soava como uma menina. Mas isso não o impediu de atirar-se de corpo e alma à carreira de cantor, aos 24 anos, para o resto da vida.
No início, sua voz juvenil e afeminada foi muito criticada: alguns depreciaram sua afinação instável, sua voz “pequena”, as vogais caipiras (thuh por the, wull por well), o recurso de respirar entre as palavras. Mas sua interpretação transmitia um sentimento tão intenso de fragilidade e inocência que acabou superando todas as críticas. Chet não tinha vergonha de cantar como uma Billie Holiday, assumindo seu lado feminino – a sua anima, no jargão junguiano da época. O álbum Chet Baker Sings em pouco tempo chegou ao Brasil e exerceu um papel fundamental nos anos de formação da bossa nova. Suas entonações vocais e ao trompete ensinaram muito aos jovens da classe média que tentavam criar uma linguagem musical mais em sintonia com a vida urbana que levavam. João Gilberto não só criou um estilo vocal a partir de Chet Baker, como venceu sua timidez e conquistou a jovem Astrud, convidando-a para duetos vocais com Chet na vitrola cantando “There Will Never Be Another You”.
Quando Chet veio ao Brasil pela primeira e única vez – para apresentar-se no primeiro Free Jazz Festival, em 1985 –, tive a oportunidade rara de conversar com ele à beira da piscina do Hotel Nacional durante quase uma hora. Na verdade, não foi bem uma conversa. Eu tentava arrancar declarações definitivas e Chet, pausadamente, olhava para o passado em câmara lenta, cansado, o rosto vincado de rugas, a boca e os dentes desfigurados por uma surra que levou de traficantes ainda nos anos de 1960, um fantasma do belo jovem que fora comparado a James Dean e chegara até a fazer filmes em Hollywood e na Itália. Mas, dentro daquele corpo precário, que já namorava com a morte, eu senti uma alma íntegra como poucas. Chet foi generoso com sua música, gravou muitos discos de graça em clubes noturnos, às vezes sem saber que estava sendo gravado, outras vezes em troca do pico da hora, simplesmente porque fazer música era, mais do que sua grande paixão, sua própria razão de ser. Totalmente desapegado dos bens materiais, morando em hotéis – adorando apenas carros velozes –, foi talvez o mais autêntico dos beats, muito mais do que intelectuais emocionalmente travados como Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Chet Baker ofereceu ao mundo – ainda oferece –, ao lado de Billie Holiday, Charlie Parker, Lester Young e John Coltrane, nesses tempos de aridez espiritual, um legado de rara beleza e liberdade.” (Improvisando soluções. Roberto Muggiati. Best Seller.pp.133-137

segunda-feira, 3 de setembro de 2012




         "Nós latino-americanos é que não podemos entrar nessa dança de glórias e de reminiscências macabras. Aqueles horrores foram as dores do parto de que nascemos. O que merece ser visto não é só o sangue derramado, mas a criatura que ali se gerou
 e ganhou vida. Sem nós, a romanidade estaria reduzida à pequenez numérica das nações neolatinas da Europa, demograficamente insignificantes, imponderáveis, num mundo demasiadamente cheio de neobritânicos, de eslavos, de chinos, de árabes etc.

          A glória da Ibéria, é bom que se reitere aqui, reside em ter guardado por mais de um milênio as sementes da romanidade, debaixo da opressão goda e sarracena, pra multiplicá-la aqui prodigiosamente. Somo o Povo Latino-Americano, parcela maior da latinidade, que se prepara para realizar suas potencialidades. Uma latinidade renovada e melhorada, porque revestida de carnes índias e negras e herdeira da sabedoria de viver dos povos da floresta e do páramo, das altitudes andinas e dos mares do sul." A América Latina existe? Darcy Ribeiro, pp.110-111.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Gide sobre "O Idiota" de Dostoievski e a Arte da Fuga (Bach)

              André Gide em uma das passagens de seu Diário relata seu descontentamento com o romance O Idiota. No mesmo dia também relata sua admiração pela Arte da Fuga de Bach. O trecho esta em espanhol.

***

1º. De diciembre.

            He escrito esta semana unas treinta páginas de mi libro; todo lo que he escrito hasta ahora de él sido a vuela pluma (es así como debe escribirse este libro), pero no sé adónde voy e temo verme detenido antes de mucho.
            He terminado el primer volumen de El idiota, mi admiración ya no es tan viva. Los personajes hacen demasiadas muecas y coinciden, si puede dicirse así, com demasiada facilidad; han perdido para mí buena parte de su mistério; casi diria que los comprendo demasiado bien, es dicir, que comprendo demasiado bien el partido que Dostoievsky quiere sacar de ellos. Hay em este libro pasajes incomparables y de uma enseñanza extraordinaria; finalmente, ciertos personajes están maravillosamente logrados; mejor dicho, pues todos los retratos son admirables, ciertas frases de los personajes, especialmente las del general Ivolguine y de la generala Epantchine. Pero mi impresión se confirma; prefiero Los poseídos a Los Karamazov; y hasta el mismo Adolescente, para no hablar de algunos relatos breves. Pero creo que El idiota está especialmente hecho para que guste a la juventud y, entre todas las novelas de Dostoievsky, yo recomendaría a los jóvenes que leyeran ésta em primer término.
            He vuelto al piano; me asombro de que toque ahora com tanta facilidad las Sonatas de Beethoven, por lo menos aquellas que me habían costado em outro tiempo mucho trabajo y había abandonado. Pero su emoción me deja extenuado y lo que hoy más me satisface es Bach y tal vez, sobre todo, su Kunst der Fugue, del que no me canso nunca. Es algo que apenas tiene nada de humano; no evoca ya el sentimento o la pasión, sino la adoración. ¡ Qué calma! ¡Qué aceptación de todo lo que es superior al hombre!¡ Qué desdén por la carne!¡ Qué paz! (André Gide, Diário, ano 1921, p. 615)




domingo, 27 de maio de 2012

Ironia e sedução



            Ler vários livros ao mesmo tempo, nos proporciona muitas vezes excelentes contrapontos entre autores diferentes, com uma mesma preocupação, retratar algo significativo de sua cultura. Neste texto, discutirei de forma até leviana, mas interessante, as diferentes visões da realidade brasileira apresentadas por dois gênios, Lima Barreto e Gilberto Freyre.
           
I

            A visão irônica de Lima Barreto apresenta sempre a realidade de sua época como um paradoxo, que a beleza sempre estava atrelada a um complexo de relações sempre desiguais e muitas vezes perniciosa para o homem comum; o preconceito como barreira social, que impedia o negro e o mestiço de ascenderem socialmente; e o valor ilusório do título de bacharel, que sempre foi um desejo nacional.
            Nas palavras de Lima Barreto, ao explicar a um amigo as motivações do livro, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, percebemos a perspicácia de quem bem percebia as delimitações raciais dentro da sociedade brasileira. Assim, “(...) ‘um rapaz nas condições de Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito.’(...)”.(BARRETO, 2010b, pág. 41).Um pouco mais a frente, na mesma carta, fica evidente que estas características da realidade brasileira nunca foram objeto de interesse dos nossos principais literatos, “ ‘(...) Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar a atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários.’ (...)”(BARRETO, 2010b, pág. 41).
            O preconceito racial não foi reduzido com o advento da República, a ascensão social da população negra continuou obstada pelas práticas higienistas na capital federal. O projeto de poder da República não foi capaz de abarcar a realidade social das diversas camadas sociais brasileira, principalmente de uma população que continuou a sombra das práticas escravistas. No livro, Triste fim de Policarpo Quaresma, todos estes aspectos são apresentados. A lei como armadilha, não há segurança, mas uma teia de mecanismos opressores:

“A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.” (BARRETO, 2011, pág. 242)

Nas páginas de Triste Fim de Policarpo Quaresma, principalmente no final do romance, percebemos o qual cruel e tirânico era o regime republicano. Na visão de Barreto, tal regime consolidava uma psique marcada pela violência do Estado, em favor de algumas corporações e grupos sociais.
O absurdo das práticas perpretadas pelo aparato estatal de segurança é abordado de forma bem sutil no conto, Mágoa que rala, publicado pela primeira vez em 1919. O conto sobre de uma criada alemã que foi assassinada por estrangulamento no Jardim Botânico. O conto tem no seu início uma bela descrição do Jardim Botânico e de seu idealizador, D. João VI. Quanto ao crime, interessa-nos como Barreto descreve as imperfeições da investigação policial, o apelo à violência com prisões indevidas e o uso da imprensa como instrumento de autopromoção.
Uma das poucas pistas do crime foi a descoberta de uma adaga com inscrições em espanhol, “Soy yo!”, sucede-se então uma verdadeira cruzada contra a população de origem espanhola. Na verdade não houve investigação, a prática habitual era prender para depois investigar, Barreto ironiza tais práticas.

“Ia assim o inquérito, cansando todos: delegado, escrivão, comissários, guardas, agentes, policiais de farda, “encostados”, jornalistas e o público; e já o doutor Matos, de São Sebastião de Passa Quatro, se resolvera a fechar a semana ‘espanhola’ e inaugurar a ‘germânica’ com a detenção de muitos alemães, (...)”.(BARRETO, 2010a, pág. 238)
           
A polícia salva-se com a confissão voluntária de um jovem brasileiro de que era o autor do crime. Prontamente a polícia dá publicidade ao fato de ter encontrado o autor do crime, novamente Barreto nos descreve com deliciosa ironia a prática tão comum naquela época, e podemos dizer extremamente comum nos nossos dias.
           
        “Determinou, então, o doutor Matos Garção que o metessem no xadrez; que o vigiassem muito e não deixassem conversar com ninguém. Logo que o rapaz se encaminhou para a prisão da delegacia, onde estavam os xadrezes, ordenou ao prontidão que telegrafasse ao chefe, aos auxiliares, à Associação de Imprensa, a todos os jornais, convidando todos para assistir à confissão do criminoso.” (BARRETO, 2010a, pág. 239)

            Barreto fornece vários detalhes sobre a rotina do suposto criminoso, mostrando-nos que ele não foi autor de tal crime odioso, porém o mesmo é levado a júri e como transparece na narrativa, teria sido absolvido.
            As práticas policiais chamam atenção, pouca investigação, uso da prisão arbitrária e divulgação na imprensa imputando culpa e definindo a condenação. Na visão de Barreto, tais práticas eram corriqueiras e mecanismos regulares de poder. Ora, como contraposição a Gilberto Freyre, quero destacar aqui  a presença de violência na sociedade brasileira, não só entre indivíduos, mas como prática de Estado, que utiliza a seu bel prazer os parâmetros da raça. Se no conto destaca-se o fator de ser um estrangeiro, nas crônicas, romances e demais contos, percebe-se este elemento racial como preceito comum nas práticas sociais brasileiras.



II

            Ao dar continuidade ao texto anterior, destacarei algumas entrevistas concedidas por Gilberto Freyre nos seus últimos dezessete anos de vida, entre 1970 e 1987. Estas entrevistas estão coligidas no livro, Gilberto Freyre: encontros (Azougue Editorial). Freyre mantêm com muita coerência suas posições, apresentadas nos seus diversos livros, e destaca sua visão sedutora de um Brasil tolerante e fraterno.
            É justamente esta característica cordial do brasileiro que nos parece bem diferente da visão irônica de Barreto, que percebia as contradições sociais e políticas de seu tempo, assim como a inadequação do negro ao ambiente hostil da nova realidade do mundo do trabalho.
            A morenidade é o grande elemento constituinte da sociedade brasileira, nem negra, nem branca, e sim, morena e inclusiva. Neste sentido, o movimento negro estaria calcado num falso princípio, o da negritude. Na visão de Freyre, “Pois há quem, em revistas e jornais, esteja procurando introduzir entre nós o mito da negritude, com intenções sectariamente ideológicas.” (FREYRE, 2010, pág. 109)
            Em entrevista para  O Cruzeiro, em 1970, Freyre defende o pressuposto de que não há racismo no Brasil, apenas situações esporádicas de preconceito de raça e cor. A morenidade constituinte da sociedade brasileira impediria a institucionalização do racismo como em outros países.
                                  
“[...] Passamos todos a ser morenos: mais ou menos morenos. Inclusive os brancos amorenados pelo sol tropical. Sabemos que agora é motivo de orgulho, no Brasil, o amorenamento da pele pelo sol das praias.[...] Creio que, a despeito de preconceitos de raça e de cor, quase sempre ligados aos de classe, o Brasil se aproxima cada dia mais do seu natural destino de tornar-se a primeira grande democracia racial no mundo. Um grande destino.” (FREYRE, 2010, pág. 119)


            Freyre reafirma a validade de uma reatualização da idéia de miscigenação como remédio social, a democracia racial brasileira se consolida a medida que todos se amorenam. A cordialidade inerente no brasileiro se reforça com a morenidade, o brasileiro é incapaz de atitudes violentas e por conseqüência do racismo violento como em outras partes do mundo.

“[...] creio que a cordialidade brasileira continua a existir. Os próprios seqüestros entre nós se apresentam com uma diminuída violência se formos comparar os assaltos, seqüestros, o terrorismo noutros países, inclusive na democracia dos Estados Unidos. Há entre nós como que uma tendência para atenuar a violência, que continua a se fazer sentir.[...]” (FREYRE, 2010, págs. 129-130)

            Ao recorrer a idéia de morenidade, Freyre caminha no sentido de reafirmar a nossa cordialidade e por tabela anular qualquer crítica que afirme o racismo como prática corriqueira em nossas relações sociais. “Nós hesitamos muito em sermos indelicados chamando preto de preto e já o chamamos de moreno. Ora, nesse fenômeno semântico me parece que está uma indicação de que nós caminhamos no Brasil para uma vasta morenidade[...]” (FREYRE, 2010, págs. 130-131)
           
            No final da década de 1970, Freyre concede entrevista ao jornal Estado de São Paulo, ele reafirma o papel mitigador da miscigenação em relação ao racismo, assim como a difícil definição do mesmo, pois estaria entremeado com os preconceitos de classe e região típicos no Brasil. (FREYRE, 2010, pág. 169) Nesta entrevista Freyre faz uma ampla defesa da monarquia e do patriarcado escravista, pois na sua interpretação o escravo e negro liberto tinham um melhor tratamento, dado pelos senhores escravistas, que possuíam um senso de responsabilidade. A nostalgia do passado torna-se evidente quando o nosso entrevistado desanca o empresariado republicano e a incompetência da República em incluir o negro.

“Os empresários industriais, que constituíram a nova elite econômica do Brasil, não tinham o senso de responsabilidade que é característico das boas elites, como foi, de certo modo, a elite agrária patriarcal no nosso país. A empresarial era uma elite de novos ricos ou recém-chegados ao poder econômico. Não prepararam os ex-escravos para os trabalhos nas novas indústrias urbanas, quase todas urbanas. [...]” (FREYRE, 2010, pág. 170)

            Apresentar o projeto republicano como falido em termos de integração do negro na sociedade é um consenso entre os historiadores, mas vangloriar o tratamento recebido pelos negros escravos durante a monarquia e glorificar o senso de responsabilidade do senhor de engenho e barões do café, já se torna um evidente engodo ou falácia interpretativa.
            Destaca-se nestas entrevistas de Freyre uma necessidade de justificar a tese da democracia racial sempre nos termos de uma glorificação do passado, que não percebe o conflito como questão constituinte de nossa sociedade, e as sentenças são sempre no sentido de reafirmar qualidades cordiais do brasileiro, mesmo que seja necessário o falseamento da realidade. Freyre nos dá a entender, exercendo aqui o papel de interprete de suas falas, que a ditadura não teria usado métodos violentos e que o nosso destino seria uma transição calma e tranqüila rumo a um modelo de democracia racial universal.
            Entrevistas são dadas em situações atípicas, pecam pela falta de rigor, além do tom informal, porém são evidencias de que Freyre continuou coerente em relação a sua visão da sociedade brasileira. A sedução de suas idéias se apresenta a nós sempre renovada. Pois a eliminação do conflito, a idéia de uma sociedade pacificada tem grande utilidade para a manutenção da ordem.
            Lima Barreto ao ironizar a sociedade de sua época captou muito bem as mazelas que o negro enfrentava e que se consolidaram nas nossas práticas sociais, a impossibilidade de ascensão social, o preconceito racial como barreira educacional, assim como assimilação da violência pelo aparato estatal policial, onde a racionalidade cede lugar a violência e a tipificação criminal em função da raça. Não há cordialidade, há violência constantemente reatualizada. 

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a.
__________. Recordações do escrivão Isaías Caminha.São Paulo: Penguin Classics Companhia das letras, 2010b.
__________. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin, 2011.
FREYRE, Gilberto. Gilberto Freyre, encontros. Org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

sábado, 26 de maio de 2012


Marian Anderson, a contralto negra que "obrigou" os Rooselvet´s a reconhecerem seu talento. A direção do Constitution Hall não permitiu sua apresentação em 1939. Eleanor Roosevelt desligou-se da Constitution Hall e o presidente Franklin permitiu que ela se apresentasse no Memorial de Lincoln.

Mitsuku Uchida sobre Beethoven, Mozart e Schubert:




"Beethoven foi o maior em tudo. Mozart foi o maior gênio. E Schubert... Ele é o mais lindo. É aquele que você vai estar ouvindo quando morrer".


"Copiar a verdade talvez seja uma coisa boa, mas inventar a verdade é melhor, muito melhor." Giuseppe Verdi

Mágoa que rala

Lima Barreto é subestimado, muitos o consideram apenas um escritor mediano ou como o alcoólatra atormentado pelo não reconhecimento, porém nos legou contos e passagens maravilhosas. 
Num desses contos encontrei uma bela descrição de D. João VI, o fato de Barreto ter sido um monarquista é irrelevante quando observamos a construção deste trecho:

"Fugindo do seu reino, trazendo consigo a mãe louca, que pedia, ao embarcar em Lisboa, andassem mais devagar, para não parecer que fugiam; obrigado pelo seu nascimento e as condições particulares do seu estado, a suportar uma mulher que perdera toda a conveniência, todo o pudor e todo o respeito a si própria, nos seus desregramentos sexuais - o pobre rei, gordo, glutão, tido como estúpido, desconfiado da sua paternidade oficial, só encontrava na música e nos aspectos naturais derivativos para a sua muito humana necessidade de efusões sentimentais." Mágoa que rala, Lima Barreto.
Euclides da Cunha, suas impressões sobre o Amazonas e as enchentes

"A enchente é uma parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se demasia em manifestações díspares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços." Os Sertões.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O palavrão é necessário?

"No momento exato, sim, o palavrão é necessário. É insubstituível. Em termos por assim dizer fisiológicos ele é, num momento desses, equivalente do arrato ou do peido alto. Mas como o arroto ou o peido, aliviando um indivíduo, ofende o olfato e os ouvidos dos circunstantes que não sintam, no momento, igual necessidade de alívio ou de desabafo. Daí a necessidade de ser reduzido o seu uso ao inevitável. Isto na vida real. Isto, por analogia, no teatro e na literatura. Quando insubstituível ou inevitável, que venha o palavrão. Inútil qualquer substituto para "porra" ou "merda".

Gilberto Freyre, entrevista concedida ao Diário da Noite, 1970
Lima Barreto é subestimado, muitos o consideram apenas um escritor mediano ou como o alcoólatra atormentado pelo não reconhecimento, porém nos legou contos, romances, crônicas e passagens maravilhosas como esta. 
Num desses contos encontrei uma bela descrição de D. João VI, o fato de Barreto ter sido um monarquista é irrelevante quando observamos a construção deste trecho:

"Fugindo do seu reino, trazendo consigo a mãe louca, que pedia, ao embarcar em Lisboa, andassem mais devagar, para não parecer que fugiam; obrigado pelo seu nascimento e as condições particulares do seu estado, a suportar uma mulher que perdera toda a conveniência, todo o pudor e todo o respeito a si própria, nos seus desregramentos sexuais - o pobre rei, gordo, glutão, tido como estúpido, desconfiado da sua paternidade oficial, só encontrava na música e nos aspectos naturais derivativos para a sua muito humana necessidade de efusões sentimentais." Mágoa que rala, Lima Barreto.

sábado, 10 de março de 2012

O mar, este estado de espírito

ANTE EL MAR
(Paráfrasis)

Mi corazón !oh mar! tiene sus olas,
sus furores, sus calmas, sus tormentas,
sus glaciales regiones solitarias
donde la nieve impenetrable reina,
hondas grutas pobladas de cantares
falaces cual la voz de la sirena,
naufragios espantosos, torreones
de altos castillos, de blancura argéntea,
que alzara la ilusión en sus delirios
a ser mansiones de la dicha excelsa
y cambió el tiempo en tumbas resonantes
do yacen hoy las esperanzas muertas.

Todo cual tú poseo, mas tu altivo
desdén jocundo de la suerte fiera,
!oh perpetuo inconstante,
ansiara yo imitar!
Ante tu altar de rocas implacables
que enguirnalda la espuma irisdescente,
mecido por el choque clamoroso
de olas votivas mil, cuando Selene
repose en la armadura de tu pecho
la joya nacarada de su frente,
mientras avanzan cual luciente coro
de vestales cantoras las rompientes,
y la mística estrella de la tarde
en el azul purísimo aparece,
te ofrendaré mis muertas alegrías,
mis tristezas profundas y perennes,
mis sonrisas ya mustias en su aurora,
mis ensueños que en nieblas desfallecen,
tú, escucha mi plegaria,
!oh mar, soberbio mar!

(Habana, 1904)
Pedro Henríquez Ureña

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Catrin Finch Goldberg Variations / Amrywiadau Goldberg

Uma obra indescritível como as Variações Goldberg fica linda nos mais diversos instrumentos. Esta harpista gravou a versão integral, pena que encontramos no youtube apenas algumas partes.

Great Piano Concertos - Clifford Curzon plays Brahms Concerto No. 1 in D...



Esta é uma das melhores gravações já feitas deste concerto, Szell imprime uma força extraordinária e Curzon executa o piano magnificamente. Conheço as gravações de Gilels, Serkin, Freire, mas esta me agrada mais.

Luz em Agosto

Uma das mais belas passagens literárias que já li, e há muito gostaria de compartilhar aqui.

“A memória acredita antes de o conhecimento lembrar. Acredita um tempo maior do que recorda, um tempo maior até do que o conhecimento imagina. Conhece lembra acredita em um corredor num grande longo frio despojado ressonante edifício de tijolos vermelhos escuros enegrecidos pela fuligem de mais chaminés do que a sua própria, plantando num terreno atulhado de cinza espalhada sem grama rodeado de construções industriais fumacentas e cercado por uma cerca de aço e arame de três metros como uma penitenciária ou um zoológico, onde em vagas erráticas aleatórias, com chilreios infantis pardalinos, órfãos em idêntica e uniforme sarja azul dentro e fora da recordação mas no conhecimento constantes como as paredes soturnas, as janelas soturnas onde na chuva a fuligem das chaminés adjacentes de um ano riscava como lágrimas negras.” William Faulkner, Luz em Agosto, início do capítulo 6.