quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Papéis, máscaras que nos automatizam

          Ler Faulkner é um dos prazeres a que me permito pelo menos duas vezes ao ano, ou na velocidade em que as editoras reeditam ou traduzem suas obras, ora pela Cosac y Naify, ora pela Benvirá. Da primeira editora, Sartoris foi o último lançamento, lido em 2011. No entanto, a Cosac y Naify não lançou mais nada de Faulkner. Agora, no ano de 2012, a editora Benvirá tem promovido uma série de reedições de obras já traduzidas, das quais destaco O intruso. Romance sobre um negro que por se mostrar altivo e independente, passa a incomodar uma comunidade branca no sul dos Estados Unidos. Os acontecimentos ocorrem no Condado de Yoknapatwapha, imortalizado por Faulkner em suas obras.
         O trecho que selecionei é uma amostra de como as práticas racistas se perpetuam não somente pela forma que nos são impostos os papéis a serem desempenhados, mas também, como continuamos a desempenhar estes papéis, engolfados numa segunda natureza. Mesmo aqueles oprimem tem suas práticas rotinizadas.

***
           "'Acho que eles já sabem que podem contar com o senhor, senhor Lilley', seu tio disse. E eles foram em frente. 'Vê só?', seu tio disse.'Ele não tem nada contra o que ele chama de negros. Se perguntarem, provavelmente vai dizer que até gosta mais dos negros que de alguns brancos que conhece, e ele acredita nisso. Provavelmente eles sempre estão afanando alguns centavos aqui e ali na venda dele e provavelmente até levando coisas - caixinhas de chiclete ou de anil ou uma banana ou uma lata de sardinhas ou dois cordões de sapatos ou um vidro de brilhantina - por baixo dos aventais e casacos e ele sabe disso; provavelmente ele até dá aos negros umas coisas de graça - os ossos e acarne que estraga na geladeira e a banha  e as balas que estragam. Tudo que exige é que eles se comportem  como negros. Que é exatamente o que o Lucas fez: perdeu a cabeça e assassinou um branco - que é provavelmente o que o senhor Lilley está convencido que todos os negros querem fazer - e agora os brancos vão pegá-lo e queimá-lo, tudo como de costume e em ordem, e os próprios brancos vão se comportar exatamente como ele está convencido que o Lucas gostaria que se comportassem: como brancos; todos observando implicitamente as regras: o negro agindo como um negro e os brancos agindo como brancos e nenhum sentimento real e forte de nenhum lado (já que o senhor Lilley não é um Gowrie) depois que o furor passar; de fato o senhor Lilley seria provavelmente um dos primeiros a contribuir com dinheiro para o enterro do Lucas e o amparo da viúva e dos filhos se ele os tivesse. O que prova mais uma vez que ninguém pode fazer mais mal que o mal que se agarra às cegas aos vícios de seus antepassados." (O intruso, Faulkner, 2012, Benvirá, p.54-55) 



segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Orwell atualíssimo

            Nos últimos dias tenho tido vários momentos de leitura prazerosa com G. Orwell, principalmente dos ensaios presentes na coletânea, "Como morrem os pobres e outros ensaios" (Cia das Letras). Para quem veio da tradição jornalística, os textos de Orwell permanecem atuais, contrariando a  ideia de que os textos para periódicos do ramo tem validade curtíssima.
             Percebe-se que a preocupação de Orwell com a divulgação do bom romance, do incentivo a leitura e de como os críticos literários tornaram-se presa fácil de um sistema bancado por editores. Em outro texto, ele constatava já em 1943, que os meios de comunicação de massa não tem nenhuma preocupação com a divulgação da literatura.

 ***

            "Tudo isso é óbvio. O que acho um pouco meno óbvio é o modo como chegamos à atual situação. À primeira vista, a chantagem do livro é um embuste bastante simples. Z escreve um livro que é publicado por Y e resenhado por X no "Semanário W". Se a resenha for ruim, Y retirará seu anúncio, então X tem de falar de uma "obra-prima inesquecível" ou será demitido. Essencialmente, esta é a situação, e a resenha de romances afundou no poço atual em grande medida porque cada resenhista tem um editor ou editores segurando-o pelo rabo por procuração. Mas a coisa não é tão grosseira quanto parece. As várias parte do embuste não agem conscientemente juntas e foram forçadas a assumir sua posição atual em parte contra a própria vontade." (ORWELL, "Em defesa do Romance", In.: Como morrem os pobres e outros ensaios. p. 114-115)

            "[...] Do modo como estão as coisas, embora a BBC mantenha um interesse ainda que fraco pela literatura contemporânea, é mais difícil obter cinco minutos no ar para transmitir um poema do que doze horas para disseminar propaganda mentirosa, música enlatada, piadas velhas, 'discussões' fingidas ou o que mais você quiser. [...]" (ORWELL, "A poesia e o microfone", In: Como morrem os pobres e outros ensaios. p. 131)
           

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A corrida contra o relógio

              A vivência trágica na maioria das vezes é paralisante, mas no caso do historiador brasilianista Kenneth Serbin  tornou-se motivação enfrentar o seu destino e ajudar os outros que compartilham da mesma doença. Este relato prenhe de humanidade, e sim, que enxerga nas ciências um esteio para que sejam enfrentados os mais diversos problemas é um exemplo para muitos pesquisadores e profissionais das ciências humanas que tendem desdenhar das das outras áreas do conhecimento humano.


xxx

16/12/2012 - 08h00

A corrida contra o relógio genético

KENNETH P. SERBIN

ESPECIAL PARA A FOLHA


Acadêmicos volta e meia mudam de foco ao longo da carreira e se entregam a uma nova descoberta, um novo emprego ou à mera necessidade de mudar de assunto. Comigo, isso aconteceu ao descobrir que, em algum momento, vou desenvolver uma doença cerebral apavorante, intratável e fatal.
A descoberta de que carrego o gene da doença de Huntington me forçou a reavaliar minha vida e carreira, me impôs um novo papel de ativista (embora, de início, exercido sob pseudônimo) e me lançou numa luta que pode afetar minha própria sobrevivência.
Minha especialidade de longa data como pesquisador é a história brasileira moderna. Mas, sem alarde e com convicção crescente, comecei a me envolver num segundo campo uma área que engloba ciência, tecnologia e medicina, em busca de avanços que possam salvar a mim, a outros 30 mil americanos afetados por essa doença medonha e a estimados 150 mil a 250 mil outros que podem desenvolvê-la. No Brasil, calcula-se que os portadores do gene sejam algo entre 13 mil e 19 mil, e que outros mais, de 65 mil a 95 mil pessoas, correm o risco de ter o gene.
A doença de Huntington carrega um estigma, não por ser contagiosa ou indicativa de comportamento dissoluto não é uma coisa nem outra, mas porque seus sintomas assustadores são os de uma doença herdada. Os nazistas teriam esterilizado à força até 3.500 pessoas afetadas pelo mal e, nos EUA, onde a esterilização involuntária continuou a ser praticada até a década de 1960, os defensores da eugenia preconizaram o procedimento também para os portadores de Huntington.
Filhos de pai ou mãe com doença de Huntington têm 50% de chances de herdar o gene mutante que causa o mal. Qualquer pessoa que tenha o gene vai desenvolver a doença em algum ponto, geralmente entre os 35 e 55 anos de idade. Não há cura ou tratamento.
Por anos, preocupado com os riscos profissionais e sociais que poderia correr se revelasse minha condição de portador do gene, fui um ativista de bastidores, assinando como Gene Veritas, nom de plume sob o qual sou bastante conhecido na comunidade ligada à doença de Huntington, graças a meu blog (curehd. blogspot.com).
Hoje, culminando um processo longo e doloroso de sair do armário, quero assumir em público minha história, para combater o estigma e o medo que cercam a doença de Huntington e outros distúrbios neurológicos. Com isso, espero ainda ajudar a obter mais apoio a pesquisas sobre o cérebro.
DIABO
Essa jornada começou no dia seguinte ao Natal de 1995, quando soube que minha mãe, Carol, tinha Huntington. Com a notícia, veio a compreensão deprimente de que ela estava fadada a morrer do mal já descrito como o diabo de todas as doenças.
A doença produz uma tríade pavorosa de anomalias motoras, cognitivas e comportamentais que se assemelham aos males de Parkinson, Alzheimer e a distúrbios psiquiátricos. Fiquei sabendo que, quanto mais pronunciada a mutação, mais cedo a doença se manifesta. E que um homem pode transmitir uma mutação muito mais grave que uma mulher, levando a doença a se manifestar precocemente em seus filhos, até mesmo na primeira infância.
Na época, ainda faltavam quatro anos para eu ter uma cadeira estável na Universidade de San Diego. Com medo de perder o plano de saúde e o emprego de professor assistente, não contei a quase ninguém sobre a minha situação. Temia a reação dos meus colegas ao saber que um intelectual como eles pudesse ter o cérebro geneticamente comprometido. E adiei os exames genéticos de previsão.
Durante vários anos refleti sobre o assunto, só com minha mulher, Regina, itabirana que foi criada no Rio, e com um grupo de apoio da seção de San Diego da Sociedade Americana da Doença de Huntington. Em meados de 1999, com Regina querendo muito que tivéssemos filhos, decidi me submeter aos exames.
Ficamos atordoados ao descobrir que eu tinha a mutação.
Quase sem saber como reagir, e cientes de que, assim como foi com minha mãe, eu, perto dos 40 anos, estava correndo contra meu relógio genético, seguimos estoicamente adiante com nosso plano de procriar. Regina não demorou a engravidar. Durante quatro meses lancinantes, até termos o resultado do exame genético, aguardamos para saber o destino da vida nova que crescia em seu ventre.
Na medida do possível, concentrei-me em concluir o meu primeiro livro e em me preparar para a obtenção da cadeira estável. Ficamos especialmente preocupados ao pensar que Regina, longe de sua família, talvez tivesse que cuidar tanto do marido quanto de um filho com a doença de Huntington.
Nossa angústia enfim deu lugar a alegria quando soubemos que nosso bebê-milagre estava livre do gene da doença. Bianca nasceu saudável em 26 de junho de 2000.
À noite e nos fins de semana, mergulhei no trabalho voluntário no conselho da seção de San Diego da Sociedade da Doença de Huntington. Defendendo um maior ativismo, ajudei a escrever um colóquio bipartidário sobre a doença, que apareceu no Congressional Record. Em viagens de pesquisa ao Brasil, tive contatos com a então nascente Associação Brasil Huntington, fundada em 1997.
Como editor do Conquest, o boletim da seção de San Diego, e valendo-me da perspectiva humana conquistada em meus estudos sobre o Brasil, explorei por sete anos as profundezas assustadoras e os anseios esperançosos da comunidade de Huntington. Escrevi editoriais contra a discriminação genética e a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Para conhecer melhor os aspectos científicos e lidar melhor com meu medo, redigia atualizações regulares sobre as pesquisas no campo. O Conquest começou a alcançar doadores de destaque justamente quando inauguramos um evento de gala em apoio ao novo centro de serviços familiares da sociedade em San Diego. Mas meu nome não aparecia no boletim.
Refletindo sobre como divulgar a doença sem divulgar meu nome, decidi lançar um blog sob um pseudônimo que significa a verdade em meus genes.
Meu nome é Gene Veritas e corro o risco de desenvolver a doença de Huntington, escrevi em 10 de janeiro de 2005. Nos últimos oito anos, em mais de 140 artigos, abri o meu coração, falando das dificuldades enfrentadas por minha família e entrevistando cientistas. Documentei a dolorosa experiência de viver na zona cinzenta entre o resultado de um exame genético e a chegada da doença que o exame previu ao mesmo tempo que se aguarda com ansiedade a descoberta de um tratamento eficaz.
DESVIOS
A doença de Huntington acabou desviando minha vida do rumo desejado em inúmeras ocasiões. Em meados de 2005, minha mãe foi internada numa clínica para doentes terminais. À medida que ela perde a capacidade de engolir, a morte se aproxima, escrevi para uma médica amiga, falando de minha preocupação crescente com o futuro de minha mãe e o meu.
Será que vou ver minha filha se apaixonar e fazer faculdade? O suicídio pouparia minha família de um peso exaustivo e financeiramente ruinoso. Eu não sofreria como os pacientes de Huntington que vi numa clínica, contorcendo-se sem controle, usando fraldas, amarrados com cintos a cadeiras especiais ou confinados em quartos com paredes acolchoadas. Mas, se me suicidasse, minha filha ficaria arrasada.
Minha mãe morreu dormindo em 13 de fevereiro de 2006. Tinha 68 anos. Profundamente abatido, achando que eu seria o próximo a apresentar a doença, levei quase um ano para reconquistar meu equilíbrio emocional, enquanto conseguia presidir a Associação de Estudos Brasileiros.
Em 2007, numa decisão dolorosa que transformou minha carreira, recusei um trabalho em que eu ajudaria a comandar o excelente Centro para a América Latina na Universidade Internacional da Flórida para ficar em San Diego, um centro de biotecnologia.
Prevendo meu deslocamento em direção à história da ciência, valorizei a flexibilidade intelectual de minha universidade, uma instituição privada de ciências humanas. O mais importante de tudo foi que ficar na Califórnia permitia que Regina mantivesse seu cargo de professora, relativamente bem pago, que seria nosso esteio financeiro se eu ficasse incapacitado.
Naquele ano, quando a agência de pesquisas com células-tronco aprovada pelos eleitores da Califórnia, com verba de US$ 3 bilhões, se preparava para emitir dotações para pesquisas, iniciei um trabalho estadual em favor da causa, planejando iniciar apresentações sobre a doença diante do conselho de supervisão da agência.
Desde então, eu e outros ativistas ajudamos a garantir quase US$ 29 milhões para projetos de células-tronco sobre a doença de Huntington. Enquanto isso, uma importante e nova iniciativa de cura da doença de Huntington, um grupo biomédico sem fins lucrativos chamado CHDI Foundation Inc., revolucionou as pesquisas sobre medicamentos contra o mal e, pela primeira vez, envolveu laboratórios farmacêuticos importantes. Finalmente a comunidade de Huntington tem motivos para esperanças reais.
A aprovação da lei federal de saúde e de medidas para proteger da discriminação de empregadores e seguradoras pessoas que detectem distúrbios genéticos me deu coragem para começar a vir a público sobre minha condição.
Em 2011, fiz um discurso de abertura, o mais importante de minha vida, da sexta conferência anual de pesquisas do CHDI, em que expliquei que Gene Veritas era Kenneth P. Serbin e exortei os cientistas a redobrar seus esforços. (O discurso pode ser visto em vimeo.com/19906160)
Com este ensaio, meu primeiro na grande imprensa, dou meu passo decisivo para sair do armário da doença. Agora quero integrar minha atividade em favor da causa e minha paixão recém-descoberta pela história da ciência com minha carreira de brasilianista.
Entrei para a Sociedade de História da Ciência, vou desenvolver um curso sobre a história do cérebro e vou buscar ligações com os novos projetos de minha universidade na área de neurociências e de trabalho social para promover a saúde cerebral como prioridade internacional.
A história da doença de Huntington é a história de nossos tempos. A doença foi uma das primeiras para as quais foi desenvolvido um exame genético. À medida que aumenta o conhecimento sobre outros males, a ética médica precisa ser submetida a uma revisão profunda, e é preciso que surja um movimento pelos direitos genéticos. Tomando emprestada a frase de outro acadêmico, os portadores de genes causadores de doenças são, para mim, os pioneiros morais na fronteira genética.
Com outros grupos latino-americanos, a Associação Brasil Huntington vem tendo papel cada vez mais importante na busca por um tratamento. Em setembro de 2013 o Brasil vai estar sob os holofotes científicos globais, quando o Congresso Mundial sobre a Doença de Huntington for realizado no Rio.
As pesquisas sobre Huntington podem abrir os segredos de milhares de distúrbios genéticos, neurológicos e condições órfãs raras que, juntas, arrasam milhões de pessoas, começando pelas doenças de Alzheimer e Parkinson. Como ilustra especialmente o Alzheimer, é possível ter vida física mais longa, mas será que poderemos viver por mais tempo mentalmente? Esses distúrbios todos impõem uma carga esmagadora às pessoas que cuidam dos doentes.
Estou com 52 anos, a idade em que minha mãe começou a apresentar a doença. Valorizo cada momento de saúde. Ao contemplar meu legado intelectual, incentivo outros a entrarem na corrida para proteger nosso principal recurso natural nossos cérebros e lutar por um mundo em que a ciência conquiste as doenças.
KENNETH P. SERBIN, 52, professor de história da Universidade de San Diego, é autor de "Padres, Celibato e Conflito Social - Uma História da Igreja Católica no Brasil" (Cia das Letras).
Tradução de CLARA ALLAIN.