terça-feira, 20 de junho de 2017

"Eu não acredito, torpe Liébediev, nas carroças que transportam comida para a humanidade! Porquanto as carroças que transportam comida para toda a humanidade, sem o fundamento moral do ato, podem excluir com o maior sangue frio uma parte considerável da humanidade do prazer com o transportado, o que já aconteceu..." Dostoiévski, O idiota. pág. 419

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Philip Roth sobre os governos e a cultura

        Muito interessante a reflexão de Philip Roth sobre a cultura nacional e a influência dos governos sobre a mesma. No Brasil a esquerda exige que os governos devam bancar e dirigir a cultura nacional, desde que orientados por sua matriz ideológica. Não importa o quanto isso possa ser nefasto em termos de controle e perda da autonomia. No final das contas, todos querem uma migalha do Estado, com a ilusão de não perder sua liberdade e autonomia, o que se provou impossível historicamente.

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"... Em uma imensa sociedade comercial, que exige completa liberdade de expressão, a cultura é uma pança. Há pouco, o primeiro romancista americano a receber uma Medalha de Ouro especial do Congresso por sua ´contribuição à nação´ foi Louis L´Amour. Foi-lhe entregue na Casa Branca, pelo presidente. O único outro país do mundo onde tal escritor receberia o maior prêmio do governo é a União Soviética. Entretanto, em um estado totalitário, toda cultura é imposta pelo regime; felizmente nós, nos Estados Unidos, vivemos na república de Reagan, não na de Platão e, com exceção dessa estúpida medalha, a cultura é quase completamente ignorada. E isso é bem mais preferível. Enquanto os que estão no controle ficarem fazendo homenagens a Louis L´Amour e não se importarem com mais nada, tudo estará bem. A primeira vez que estive na Tchecoslováquia, veio-me à mente que trabalho em uma sociedade onde, como escritor, tudo vale e nada tem importância, enquanto que, para os escritores tchecos que conheci em Praga, nada vale e tudo tem importância. Isso não quer dizer que eu gostaria de trocar de lugar. Não fiquei com inveja da perseguição que sofrem e da forma como isso aumenta a importância social deles. Nem mesmo senti inveja de seus temas aparentemente mais sérios e importantes. A vulgarização, no Ocidente, de muita coisa que é extremamente séria no Oriente, já e um assunto, um assunto que exige considerável talento imaginativo para se transformar em ficção atraente. Escrever um livro sério que não evidencie sua seriedade por meio das insinuações retóricas ou importância temática, tradicionalmente associadas à seriedade, também é um empreendimento válido. Fazer justiça a uma condição espiritual que não choca de forma espalhafatosa  nem horripila de forma monstruosa, que não desperta compaixão universal nem acontece em um grande teatro histórico ou na maior escala de sofrimento do século XX - bem, essa é a sina dos que escrevem onde tudo vale e nada tem importância. Ouvi, recentemente, o crítico George Steiner denunciar, pela televisão inglesa, que a literatura ocidental contemporânea é completamente desprezível e sem qualidade e proclamar que os grandes documentos da alma humana, as obras-primas, só podem surgir de espíritos que estão sendo subjugados por regimes como o da Tchecoslováquia. Gostaria, então, de saber por que todos os escritores da Tchecoslováquia que conheço abominam o regime e desejam ardentemente que ele desapareça da face da terra. Não entendem, como Steiner, que esta é a oportunidade que têm de ser grandes? Às vezes, um ou dois escritores, com colossal força bruta, conseguem, por milagre, sobreviver e, tomando o sistema como assunto, transformam a perseguição que sofreram em arte de alta categoria. Mas a maioria deles, que permanece impedida de se manifestar dentro dos estados totalitários, é de escritores destruídos pelo sistema. Esse sistema não cria obras-primas; cria tromboses coronárias, úlceras e asma, cria alcoólatras, cria depressivos, cria amargura, desespero e loucura. Os escritores ficam desfigurados intelectualmente. São, com frequência, completamente silenciados. Nove décimos dos melhores deles jamais realizarão uma obra-prima, só por causa do sistema. Os escritores promovidos por esse sistema são os mercenários do partido. Quando tal sistema prevalece por duas ou três gerações, implacavelmente oprimindo uma comunidade de escritores durante vinte, trinta ou quarenta anos, as obsessões se tornam fixas, a linguagem se deteriora, o hábito da leitura desaparece aos poucos e a existência de uma literatura nacional com originalidade, variedade, vibração (que é muito diferente da brutal sobrevivência de uma única voz convincente) torna-se quase impossível. A literatura que tem a má  sorte de permanecer isolada, às ocultas por muito tempo, tornar-se-á  inevitavelmente provinciana, atrasada, ingênua mesmo, apesar do cabedal de experiência sombria que possa inspirá-la. Em contraste, aqui, nossa obra  não foi privada de autenticidade, porque não fomos reprimidos como escritores por um governo totalitário. Não sei de nenhum escritor ocidental, com exceção de George Steiner, que esteja tão pomposa e sentimentalmente iludido sobre o sofrimento humano - e ´obras-primas´ - a ponto de voltar da Cortina de Ferro julgando-se desvalorizado porque nunca teve de lutar contra um ambiente intelectual e literário tão deprimente. Se a escolha for entre Louis L´Amour, nossa liberdade literária e nossa vasta e ativa literatura nacional de um lado, e Soljenitzyn, o deserto cultural e a repressão esmagadora do outro, ficarei com L´Amour." Philip Roth em entrevista à Paris Review, 1983-1984. páginas 364-366

domingo, 18 de junho de 2017

            "Disseram que a literatura é o ´sorriso da sociedade´. Julgo isso estupidez e safadeza. Não escrevemos para dar prazer aos idiotas..." Graciliano Ramos. Folha do Povo, 1949.