quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Octavio Paz nos presenteia com esta bela passagem



        "[...] Ninguém conhece o desenlace final da história, porque o seu fim é também o fim do homem. Mas, não podemos nos demorar nestas perguntas sem resposta, porque a história nos obriga a que vivamos: é a substância da nossa vida e o lugar da nossa morte. Entre viver a história e interpretá-la, vivemo-la: fazemos história; ao vivê-la, interpretamo-la: cada um
 de nossos atos é um signo. A história que vivemos é uma escritura; na escritura da história visível devemos ler as metamorfoses e as mudanças da história invisível. Esta leitura é uma decifração, a tradução de uma tradução: jamais leremos o original. Toda versão é provisória: o texto muda sem cessar (embora talvez sempre diga o mesmo), e daí que, de tempos em tempos, descartem-se certas versões em favor de outras que, por sua vez, tinham sido descartadas antes. Toda tradução é uma criação: um texto novo...[...]" Octavio Paz, Crítica da Pirâmide.
  

Billie Holiday e Strange Fruit


               Toda vez que vejo Billie Holiday cantar, nos vídeos que permaneceram, é perceptível a tristeza nas suas expressões. Mesmo quando sorri, e aqui forço a barra, é um sorriso constrangido. Escrevo isso para ressaltar o quanto foi penoso para el
a ter de explicar o significado de “strange fruit”, música que ela não compôs, mas que foi eternizada em sua voz. “Strange Fruit” não se explica, se sente. E Billie Holiday sentiu mais do que ninguém, pois colocou-se na linha de frente ao interpreta-la. No livro, “Billie Holiday e a biografia de uma canção, Strange Fruit” (Cosac y Naify), de David Margolick percebe-se todos os tormentos pelos quais ela passou junto com a música. 
                Uma passagem muito marcante do livro revela aquela inquietude de Billie. Ela não era uma alienada como muitos diziam, o fundamental é que a sua explicação da música estava nos sentimentos mobilizados ao cantá-la. Mas, quando tenta explica-la, mesmo a pedido de uma criança, há uma verdadeira explosão de raiva, que talvez sempre estivesse com ela. Segue o emocionante relato.

              “Em The Heart of a Woman, Maya Angelou conta como, durante uma visita a Los Angeles em 1958, Holiday cantou “Strange Fruit” para seu filho pequeno, Guy:
           “Billie cantou em tom rouco e seco a famosa canção de protesto. A voz áspera e o fraseado me encantaram. Vi os corpos negros pendurados nas árvores do sul. Vi o sangue das vítimas de linchamento escorrendo das folhas pelos troncos até as raízes. 
               Guy interrompeu: ‘Como pode ter sangue na raiz?’. Fiz cara feia e falei: ‘Fique quieto, Guy, só escute’. Billie continuou por cima da interrupção, a voz vibrando, áspera.
Ela pintava uma cena de uma terra linda, pastoral, bucólica, e acrescentava olhos saltados e bocas retorcidas à paisagem do Sul.
              Guy interrompeu a música. ‘O que é cena pastoral, miss Holiday?’ Billie levantou os olhos devagar, fitou Guy um momento. O rosto dela ficou cruel e quando falou sua voz era cheia de desdém. ‘É quando os crackers matam os pretos. É quando eles pegam um pretinho que nem você, arrancam o saco dele e enfiam goela abaixo. É isso que é.’ 
             A onda de raiva assustou Guy e me deixou pasma.
             Billie continuou: ‘É isso o que eles fazem. Isso que é uma porra de uma cena pastoral’”.
             Um ano depois, Holiday estava morta”
David Margolick. Billie Holiday e a biografia de uma canção, Strange Fruit. p. 111-112.

      "Quantas vezes os homens escaparam das dores dos seus próprios corpos com o auxílio daquele aspecto sentimental da imaginação que sente as dores da carne dos outros como se fossem dores nossas!" Yukio Mishima, Sol e Aço.