Neste texto de 1931, Graciliano Ramos tenta compreender não o Lampião, indivíduo, mas o contexto social que explica o surgimento de vários lampiões.
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Lampião
Lampião nasceu
há muitos anos, em todos os estados do Nordeste. Não falo, está claro, no
indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco
interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador
cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda,
chamboqueiro, dá impressão má.
Refiro-me ao
lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor não veja
alusões a um homem só.
Lampião
nasceu, pois, há muitos anos, mas está moço e de boa saúde. Não é verdade que
seja doente dos olhos: tem, pelo contrário, excelente vista.
É analfabeto.
Não foi, porém, a ignorância que o levou a abraçar a profissão que exerce.
No começo da
vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada,
de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando
se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o
conduzia para a cadeia da vila. Aí ele aguentava uma surra de vergalho de boi e
dormia com o pé no tronco.
As injustiças
e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é
resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar
do governo não é desfeita.
O que
transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía
um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado morrer e
em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia mato
raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações de
cabra preta, tomou o rifle e ganho a capoeira. Lá está como bicho montado.
Conhecidos
dele, velhos, subiram para o Acre; outros, mais moços, desceram para São Paulo.
Ele não: foi ao Juazeiro, confessou-se ao padre Cícero, pediu a bênção a Nossa
Senhora e entrou a matar e roubar. É natural que procure o soldado que lhe
pisava o pé, na feira, o delegado que lhe dava pancada, o promotor que o
denunciou, o proprietário que lhe deixava a família em jejum.
Às vezes
utiliza outras vítimas. Isto se dá porque precisa conservar sempre vivo o
sentimento de terror que inspira e que é mais eficaz das suas armas.
Queima
fazendas. E ama, apressado, um bando de mulheres. Horrível. Mas certas
violências, que indignam criaturas civilizadas, não impressionam quem vive
perto da natureza. Algumas amantes de Lampião se envergonham, realmente, e
finam-se de cabeça baixa; outras, porém, ficam até satisfeitas com a
preferência e com os anéis de miçanga que recebem.
Lampião é
cruel. Naturalmente. Se ele não se poupa, como pouparia os inimigos que lhe
caem entre as garras? Marchas infinitas, sem destino, fome, sede, sono curto
nas brenhas, longe dos companheiros, porque a traição vigia... E de vez em
quando a necessidade de sapecar um amigo que deita o pé adiante da mão...
Não podemos
razoavelmente esperar que ele proceda com os que têm ordenado, os que depositam
dinheiro no banco, os que escrevem em jornais e os que fazem discursos. Quando
a política o apanhar, ele estará metido numa toca, ferido, comendo uma cascavel
ainda viva.
Como somos
diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós.
Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se
professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e
depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês
para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas
emprestadas.
Apesar de
tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos
pouco.
O que nos
consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando
descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.
E já agora nos
traze, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre
inúteis.
Afinal, somos
da mesma raça. Ou das mesmas raças.
É possível,
pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião.
Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos
adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola.
(Originalmente
em: RAMOS, Graciliano. “Lampião”. Revista Novidade.
Maceió, n.3, p.3, 25 abr. 1931.) Retirado de “Cangaços”, págs. 27-30, Editora Record.