quarta-feira, 27 de agosto de 2014

As vicissitudes da democracia eleitoral

      Eis um trecho adequado ao período eleitoral, Getúlio Vargas aconselha a população brasileira a votar no general Eurico Gaspar Dutra, aquele que apoiou a deposição de Vargas meses antes. Dutra, político sintonizado com os interesses do empresariado internacional, recebe apoio de um nacionalista empedernido.

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Brasileiros!!

              A abstenção é um erro. Não se vence sem luta, nem se participa da vitória ficando neutro. Fora do governo, meu espírito sofreu decantação de quaisquer ressentimentos, por injustiças sofridas...
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             O general Eurico Gaspar Dutra, candidato ao P.S.D, em repetidos discursos e, ainda agora, em suas últimas declarações, colocou-se dentro das idéias do programa trabalhista e assegurou  a esse partido garantias de apoio, de acordo com as suas forças eleitorais. Ele merece, portanto, os nossos sufrágios.
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Getúlio Vargas

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Candido sobre Machado de Assis

           Antonio Candido publicou uma pequena obra introdutória à literatura brasileira, há alguns anos, precisamente em  1987, destinada a leitores estrangeiros ciosos de uma informação rápida sobre a história da literatura brasileira. O livro, cujo o título é "Iniciação à literatura brasileira" (Editora Ouro sobre Azul) nos proporciona uma leitura deliciosa, e dele retirei este precioso e sintético juízo sobre Machado de Assis, e o que o define como um gênio da literatura universal. Aliás, juízo que vale para todos os grandes escritores, e por que alguns são atuais e outros não.

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             "Sua obra é variada e tem a característica das produções eminentes: satisfaz tanto aos requintados quanto aos simples. Ela tem, sobretudo, a possibilidade de ser reinterpretada à medida que o tempo passa, porque, tendo uma dimensão profunda de universalidade, funciona como se se dirigisse a cada época que surge..." Antônio Candido sobre a obra de Machado de Assis, "Iniciação à literatura brasileira", pág. 65. 
Do disco "Sonny Meets Hawk!", Sonny Rollins e Coleman Hawkins, dois gigantes do tenor.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Direito ao corpo

            O fato de a mulher muçulmana não ter o livre direito sobre seu corpo está entre as principais críticas ao mundo islâmico. De fato é uma crítica pertinente, entretanto, é correto determinar tal prática como uma das justificativas para afirmar que os muçulmanos compõem uma civilização atrasada? A Arábia Saudita tem uma legislação extremamente restritiva em relação as mulheres, no entanto, é um dos países mais ricos do mundo, e possui elevado grau de modernidade econômica. Os Estados Unidos não se furtam a negociar e apoiar  os reis sauditas. Mas, mesmo diante desta contradição, vemos espíritos ingênuos apoiarem a ideia de uma guerra contra o atraso islamita, seguros de que estão defendendo a civilização ocidental. Também na nossa civilização Ocidental, há casos de barbárie, e negação do direito ao corpo.
          Há alguns dias atrás, lembrava-me de ter lido um texto onde eram destacados os casos de contaminação por herpes de bebês submetidos a circuncisão, o que ocorreu na cosmopolita Nova York. Ora, pois ali existem judeus ortodoxos, que submetem seus filhos a tais abusos. Obviamente a eles não é creditado a pecha de radicais incivilizados. Se em Nova York, terra secularizada, isto acontece, imaginem em Israel, nas comunidades mais ortodoxas. Mas os bárbaros estão sempre do outro lado do muro.  Para melhor informação, segue o link da reportagem no site de Paulo Lopes, e depois, o texto a que me referi.

Reportagem no site de Paulo Lopes: 

Texto de Christopher Hitchens sobre caso ocorrido em 2005.

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...Descobriu-se que em Nova York, no ano de 2005, o ritual, realizado por um mohel de 57 anos de idade, trasmitiu herpes genital a vários meninos e causou a morte de pelo menos dois deles. Em circunstâncias normais a revelação teria levado o Departamento de Saúde Pública a proibir a prática e o prefeito denunciá-la. Mas, na capital do mundo moderno, na primeira década do século XXI, não foi o caso. Em vez disso, o prefeito Bloomberg ignorou os relatórios de respeitados médicos judeus que alertavam para o perigo do costume e determinou a sua burocracia sanitária que adiasse qualquer veredicto. A questão fundamental, disse ele, era assegurar que a livre prática da religião não estivesse sendo infringida. 
Christopher Hitchens, deus não é Grande, pág.55 

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Segue um trecho elucidativo sobre o prazer das mulheres, segundo os princípios de Maimônides, em o Guia para os perplexos.

Com relação à circuncisão, uma das razões para ela, em minha opinião, é um desejo de conseguir uma redução do intercurso sexual e um enfraquecimento do órgão em questão, de modo que essa atividade seja reduzida e o órgão esteja no estado de maior repouso possível. Acredita-se que a circuncisão aperfeiçoa o que é congenitamente defeituoso (...) Como as coisas naturais podem ser defeituosas de modo a precisarem ser aperfeiçoadas externamente, especialmente quando sabemos quão útil é o prepúcio para aquele membro? Na verdade, esse mandamento não foi prescrito com o objetivo de aperfeiçoar o que é moralmente defeituoso. A dor corporal causada ao membro é o verdadeiro objetivo da circuncisão. (...) O fato de que a circuncisão reduz a capacidade de excitação sexual e algumas vezes talvez diminua o prazer é indubitável. Pois, se no nascimento esse membro sangrar e tiver sua cobertura removida, ele indubitavelmente tem de ser enfraquecido.

Apud, deus não é Grande, pág. 205

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Se foram criados limites a barbárie religiosa, eles tiveram origem na secularização. O resto é bobagem...



domingo, 10 de agosto de 2014

Graciliano Ramos sobre Lampião

          Neste texto de 1931, Graciliano Ramos tenta compreender não o Lampião, indivíduo, mas o contexto social que explica o surgimento de vários lampiões.

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Lampião

Lampião nasceu há muitos anos, em todos os estados do Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má.
Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor não veja alusões a um homem só.
Lampião nasceu, pois, há muitos anos, mas está moço e de boa saúde. Não é verdade que seja doente dos olhos: tem, pelo contrário, excelente vista.
É analfabeto. Não foi, porém, a ignorância que o levou a abraçar a profissão que exerce.
No começo da vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele aguentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco.
As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita.
O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações de cabra preta, tomou o rifle e ganho a capoeira. Lá está como bicho montado.
Conhecidos dele, velhos, subiram para o Acre; outros, mais moços, desceram para São Paulo. Ele não: foi ao Juazeiro, confessou-se ao padre Cícero, pediu a bênção a Nossa Senhora e entrou a matar e roubar. É natural que procure o soldado que lhe pisava o pé, na feira, o delegado que lhe dava pancada, o promotor que o denunciou, o proprietário que lhe deixava a família em jejum.
Às vezes utiliza outras vítimas. Isto se dá porque precisa conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira e que é mais eficaz das suas armas.
Queima fazendas. E ama, apressado, um bando de mulheres. Horrível. Mas certas violências, que indignam criaturas civilizadas, não impressionam quem vive perto da natureza. Algumas amantes de Lampião se envergonham, realmente, e finam-se de cabeça baixa; outras, porém, ficam até satisfeitas com a preferência e com os anéis de miçanga que recebem.
Lampião é cruel. Naturalmente. Se ele não se poupa, como pouparia os inimigos que lhe caem entre as garras? Marchas infinitas, sem destino, fome, sede, sono curto nas brenhas, longe dos companheiros, porque a traição vigia... E de vez em quando a necessidade de sapecar um amigo que deita o pé adiante da mão...
Não podemos razoavelmente esperar que ele proceda com os que têm ordenado, os que depositam dinheiro no banco, os que escrevem em jornais e os que fazem discursos. Quando a política o apanhar, ele estará metido numa toca, ferido, comendo uma cascavel ainda viva.
Como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas.
Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco.
O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.
E já agora nos traze, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis.
Afinal, somos da mesma raça. Ou das mesmas raças.
É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola.

(Originalmente em: RAMOS, Graciliano. “Lampião”. Revista Novidade. Maceió, n.3, p.3, 25 abr. 1931.) Retirado de “Cangaços”, págs. 27-30, Editora Record.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

VOCÊS E NÓS

Da página de Albino M., o qual assina a tradução que vem após o original.

USTEDES Y NOSOTROS

Ustedes cuando aman
exigen bienestar
una cama de cedro
y un colchón especial

nosotros cuando amamos
es fácil de arreglar
con sábanas qué bueno
sin sábanas da igual

ustedes cuando aman
calculan interés
y cuando se desaman
calculan otra vez

nosotros cuando amamos
es como renacer
y si nos desamamos
no la pasamos bien

ustedes cuando aman
son de otra magnitud
hay fotos chismes prensa
y el amor es un boom

nosotros cuando amamos
es un amor común
tan simple y tan sabroso
como tener salud

ustedes cuando aman
consultan el reloj
porque el tiempo que pierden
vale medio millón

nosotros cuando amamos
sin prisa y con fervor
gozamos y nos sale
barata la función

ustedes cuando aman
al analista van
él es quien dictamina
si lo hacen bien o mal

nosotros cuando amamos
sin tanta cortedad
el subconsciente piola
se pone a disfrutar

ustedes cuando aman
exigen bienestar
una cama de cedro
y un colchón especial

nosotros cuando amamos
es fácil de arreglar
con sábanas qué bueno
sin sábanas da igual.

Mario Benedetti

VOCÊS E NÓS

Vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial

nós quando amamos
é fácil de arranjar
com lençóis é tão bom
sem lençóis é bom também

vocês quando amam
contam o juro
e quando se desamam
contam outra vez

nós quando amamos
é como renascer
e se nos desamamos
sentimo-nos mal

vocês quando amam
são de outra magnitude
mete fotos imprensa rumores
e o amor é um boom

nós quando amamos
é um amor comum
tão simples e saboroso
como gozar de saúde

vocês quando amam
consultam o relógio
porque o tempo que perdem
vale meio milhão

nós quando amamos
é sem pressa e com fervor
gozamos e não nos fica
nada caro o serviço

vocês quando amam
até ao analista vão
e ele é quem diz
se o fazem bem ou mal

nós quando amamos
sem tanta estreiteza
o subconsciente pipila
e põe-se a desfrutar

vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial

nós quando amamos
é fácil de arranjar
com lençóis é tão bom
sem lençóis é bom também.

(Trad. A.M.)
"...A história brasileira assemelha-se à história universal: predomínio significa esmagamento de outrem ou de outra classe. A propalada 'ternura' brasileira é um mito criado para esconder uma realidade mais crua...A 'ternura' é a imagem falsa, a criação de um conceito ideológico por uma classe ( a dominante) que quer criar de si uma imagem ilusória." Edgard Carone

A seleção de Graciliano Ramos

             
             Os dez melhores romances brasileiros: Inocência, de Taunay; Casa de pensão, de Aluísio Azevedo; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Jubiabá, de Jorge Amado; Os corumbas, de Amando Fontes; Doidinho, de José Lins do Rego; As três Marias, de Rachel de Queiroz; Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira; O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; e Os caminhos da vida, de Octávio de Faria.
             
              Os dez melhores romances do mundo: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; Gargantua, de François Rabelais; As ilusões Perdidas, de Honoré Balzac; Ana Karenina, de Leon Tolstoi; Cândido, de Voltaire; Crime e Castigo, de Dostoiévski; Pickwick, de Charles Dickens; Os sete enforcados, de Leonid Andreiev; e Os Maias, de Eça de Queirós.

                     A lista foi feita a pedido da Revista Acadêmica, e retirada do livro, O velho Graça (Boitempo), de Dênis de Moraes, pág. 166.