terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Desses pudores de gente ranzinza, de economizar adjetivos, vou fugir ao hábito e tecer loas ao português Valter Hugo Mãe. Escrita lírica, sensível e tocante.

"O homem que chegou aos quarenta anos imaginou loucamente o umbigo a dilatar. Imaginou que o umbigo abria muito e que a barriga toda se começara a levantar e a revolver. Tombou sobre si mesmo e achou que sentia o corpo como dividindo-se. Achou que talvez dividisse o corpo por ter dentro de si uma vontade múltipla, um desejo de ser mais do que um só. A solidão podia transformar os homens em seres quase de fantasia por lhes mexer na cabeça e obrigar o coração a legitimar como verdadeira a mais pura ilusão. Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos a estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais as alegrias deles do que a satisfação que directamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, nunca o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser. O homem que chegou aos quarenta anos deitava-se como louco a pensar que falhar nos amores não podia impedir a divisão, porque vivia dividido. Havia dentro de si, maduro, uma amor pronto para entrega, um tesouro pertença de alguém que já não ele, e alguém teria de vir para o tomar. Chamava-se Crisóstomo." Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens. p.197

domingo, 5 de fevereiro de 2017

           A literatura pode nos ajudar a reconhecer o outro, suas demandas, muitas vezes com mais sucesso do que o melhor dos libelos políticos. E mesmo que o texto literário, o romance, tenha uma intenção política, se bem escrito e com as qualidades do bom texto, então melhor será o efeito de sua mensagem.
"...Desde o começo, já se entende tudo: ele tinha um nome de homem, meu irmão, o nome de um acidente geográfico. Ele poderia tê-lo chamado de ´Catorze Hora´, como um outro chamou o seu negro de ´Sexta-Feira´. Um horário do dia, em vez de um dia da semana. Catorze Horas, seria interessante... Um árabe breve, tecnicamente fugaz, que viveu duas horas e morreu ao longo de setenta anos ininterruptos, mesmo depois de seu enterro..."
"...Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até a sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi meu irmão, não ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? Há uma coisa que me deixa pasmo. Ninguém, mesmo depois da Independência, procurou saber o nome da vítima, seu endereço, seus antepassados, seus eventuais filhos. Ninguém. Todos ficaram de queixo caído diante daquela linguagem perfeita, que molda o ar como um diamante, e, diante da solidão do assassino, declararam solidariedade, apresentando-lhe as mais eruditas condolências. Quem poderia me dizer, hoje, o nome verdadeiro de Moussa? Quem sabe qual foi o rio que o levou ao mar que ele deveria atravessar a pé, sozinho, sem povo algum, sem nenhum cajado miraculoso? Quem sabe dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia ou insolação?" O Caso Meursault, Kamel Daoud