quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Ostenta-Deus

Elias Canetti é um autor que me surpreende a cada leitura e releitura. Não se trata apenas de seu livro cáustico e exasperador, Auto-de-fé. Sua obra é muito maior, suas inquietações perseguiram-no a vida inteira, principalmente a tentativa de compreender o fenômeno das massas no século XX (Massa e Poder). Os três primeiros volumes de sua autobiografia são uma verdadeira exegese da vida cultural na Europa do início do século XX (A Língua Absolvida, Uma Luz Em Meu Ouvido e O Jogo dos Olhos). Nesta trilogia encontramos todos os atores de uma das mais criativas fases da literatura alemã e de sua música, naquelas belas páginas de memória estão: Koestler, Krauss, Broch, Musil, Berg, Brecht, Babel, Mann, Scherchen entre outros. No Brasil saiu recentemente o último volume de sua autobiografia, Festa Sob Bombas, que relata os seus anos na Inglaterra.

Mas este post não pretende destacar suas grandes obras, mas sim um pequeno livro, “O Todo-Ouvidos” (Cinquenta caracteres). Neste pequeno livro, Canetti mostra-nos vários tipos ideais podem existir na sociedade moderna. 

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O Ostenta-Deus

O Ostenta-Deus nunca precisa perguntar a sim mesmo o que está justo. Basta que consulte o Livro dos Livros. Lá encontra tudo o que necessita. Lá tem um amparo. Lá se escora assídua e vigorosamente. O que for que ele deseje empreender, Deus o subscreverá.

O Ostenta-Deus acha as sentenças necessárias. Seria capaz de achá-las até dormindo. Não precisa preocupar-se com contradições. Elas lhe trazem proveito. Salta por cima daquilo que não lhe for útil e fixa-se numa frase insofismável. Esta será guardada para toda a eternidade, até que, com o auxílio dela, ele obtenha o que queria. Mas, depois, se a vida continuar, descobrirá outra.

O Ostenta-Deus confia no passado mais remoto e a este recorre. As sutilezas complicam tudo, e a gente passa muito melhor sem elas. O ser humano pleiteia uma resposta clara, e que permaneça sempre igual. Respostas ambíguas são inutilizáveis. Para diferentes perguntas, há dogmas distintos. Que se lhe apresente uma interrogação à qual não possa responder de modo adequado!

O Ostenta-Deus leva uma vida regrada e não perde tempo. Mesmo que o mundo desmorone a seu redor, não o acossarão dúvidas. Aquele que o criou há de salva-lo, no último instante, do ocaso, e se isso for impossível, reconstruí-lo-á após o cataclismo, para que Seu verbo se mantenha intacto e corroborado. A maioria das pessoas perecerá, porque não atentam nas Suas palavras. Mas os que prestarem atenção a elas, não se perderão realmente. Por ora, o Ostenta-Deus foi redimido de quaisquer perigos, ao passo que milhares tombaram em torno dele. Ele, porém, continua firme. Nunca nada o atingiu. Será que esse fato não terá nenhuma importância?

O Ostenta-Deus, humilde como é, não se gaba da sua condição. Conhece a estupidez dos homens e lastima-os, pois poderiam ter uma sorte muito mais amena. Mas não querem! Crêem viver em liberdade e não suspeitam o quanto são escravos de si mesmos.

Quando se encoleriza, o Ostenta-Deus, ameaça-os, mas não se serve de suas próprias palavras. Para fustigar as criaturas humanas há outras maneiras muito mais adequadas. Então se ergue, inchando a garganta, como se estivesse pessoalmente no cume do Sinai. Troveja, anuncia castigos, cospe, relampeia, arranca lágrimas da chusma abalada. Por que mais uma vez não o escutaram? Quando, finalmente, lhe prestarão atenção?

O Ostenta-Deus é um bonitão. Tem voz e melena.

CANETTI, Elias. O todo-ouvidos: cinqüenta caracteres. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. Páginas: 101-103.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Quando os santos pecam (II)

Continuação
“´Like a Rolling Stone´ nunca mais foi a mesma depois da Inglaterra; tampouco Bob Dylan e tampouco seu público. (...)” Greil Marcus
1965. Ano de vida e morte. A sociedade estadunidense passava por um período de contestação da supremacia branca, os direitos civis estavam em discussão, principalmente com Malcom X e Martin Luther King. Neste mesmo ano Malcom X é assassinado. No plano externo, os Estados Unidos enviavam para o Vietnã as primeiras tropas, era o início do fim. Mas 65 não era apenas um ano de morte, era vida, o triunfo do rock`n`roll. Os Beatles lançaram: HELP! Os Rolling Stones lançaram: OUT OF OUR HEADS. O que estes discos tinham de espetacular? Para começar Help!, Yesterday e (I can`t get no) satisfaction. E Dylan? No que Like a Rolling Stone foi inovadora e demiurgo na música pop de então e na vida de Dylan? Marcus destrincha a canção, não é uma poética engajada pura e simplista. A linguagem é desesperançada, a época não permite mais uma linguagem direta, mas apenas alusiva. Os valores culturais e sociais da época estavam em crise, não havia mais um porto seguro. O opróbrio do santo começa no domínio do conteúdo, ou seja, não vendia mais certezas, somente dúvidas. Este já era um pecado mortal, mas o pior estava na forma. Dylan fez o pacto com o diabo, a guitarra elétrica, o rock`n`roll. A heresia tinha forma e conteúdo, rock e incerteza. A Igreja folk não perdoaria Dylan, persegui-lo-iam não somente nos Estados Unidos como também na Inglaterra. O santo tornou-se herege. Já no Newport Folk Festival (1965), Dylan sofreu as conseqüências dos laivos de fé, encurtou o show e tocou para si. Não aceitavam o fato de ele apresentar-se com uma banda de rock (inicialmente HAWKS e depois a maravilhosa THE BAND). O disco todo, Highway 61 Revisited, era uma paulada, no mesmo nível das melhores bandas de rock da época. Dylan ainda tentou fazer shows em duas partes: uma sem guitarras (para os religiosos) e outra com a banda. Porém, a heresia era imperdoável, o mesmo foi chamado de Judas.  Na Inglaterra, Dylan ouviu milhares de vezes o termo: Judas. Para quem quer conferir, ouça os discos Bootleg series vol. 6 (Bob Dylan Live 1966) e Bootleg series vol. 7 (No direction Home). O documentário, No Direction Home, apresenta imagens da turnê de Dylan na Inglaterra. O preço foi pago. Um ano depois, surgiria Blonde on Blonde, outro disco espetacular do nosso herege. Não havia mais volta. O livro de Greil Marcus faz uma belíssima apresentação desta mudança na obra de Dylan e do mundo pop. A revolução da música estava não só na forma (o rock), mas no conteúdo, na afirmação de uma realidade cultural e social caótica, onde o chão cedia e não havia corrimão para segurar-se.

Quando os santos pecam (I)

As lições estéticas que uma pessoa pode ter devem ser dadas por ela mesma. Não há nada que corrompa mais o gosto, do que a defesa política de uma obra artística. Nada mais assustador, do que a dependência do santo e dos rituais sagrados.

A crucificação é uma prática recorrente nas artes em geral, e neste texto, especificamente discutirei um caso que envolve a música popular: Bob Dylan. Recentemente foi publicado no Brasil o livro, Like a Rolling Stone, de Greil Marcus (Companhia das Letras, 2010). Marcus foi editor e escreveu sobre rock por vários anos para a Revista Rolling Stone. Uma coletânea parcial dos seus ensaios foi editada pela Editora Conrad, sob o título, A Última Transmissão (1993/2006). Os ensaios de momento, ou seja, no calor do movimento punk e pós-punk nos Estados Unidos e Inglaterra, destacavam bandas como: Gang of Four, Raincoats, P.I.L., The Clash entre outras. Interessantes nesta coletânea são os ensaios que mostram a efervescência de um movimento punk no meio universitário, muito preocupado com a estética musical.

Like a Rolling Stone é um livro sobre a canção homônima de Dylan que apareceu no disco de 1965, Highway 61 Revisited, marco na sua carreira, na música folk, no rock e na cultura underground. O livro traça toda a construção, produção e gravação da música, assim como a sua repercussão no mundo cultural anglo-saxão (talvez, no mundo). Não se trata de uma história musical, pelo contrário, é um ensaio de imaginação poética de quem vivenciou os acontecimentos e com algumas pitadas de história.

Dylan era o símbolo do purismo engajado na música folk, letras poéticas, mas sempre com um objetivo certeiro, a vida do homem comum do meio-leste e as chagas sociais da sociedade estadunidense: o racismo e as humilhações sofridas por uma população não incorporada à sociedade civil. Neste contexto histórico-social, Dylan associava forma e conteúdo, formato folk e engajamento social, e um toque de intelectualismo. Não é preciso mencionar que Dylan sempre destacou a importância de Woody Guthrie (cantor folk dos excluídos) como um de seus mentores “espirituais”, ele manteve laços muito regulares com Pete Seeger, cantor e estudioso do folclore estadunidense. Seeger pertencia a uma família de estudiosos eruditos do folclore, da qual faziam parte os compositores Charles Seeger e Ruth Crawford Seeger, uma das precursoras da música atonal nos Estados Unidos.

Muito cedo, Dylan se tornou o guardião das tradições da música folk, assim como aquele que representava também uma vertente ilustrada da mesma. Esta combinação lhe custaria à crucificação em 1965. (...)