quarta-feira, 6 de dezembro de 2017




          O novo romance de Milton Hatoum é muito bom, além da narrativa envolvente, os bons diálogos,e desfazendo-se de uma característica antiga, o autor reduz as descrições, produzindo um texto enxuto. Aqueles que tiveram algum contato com o Distrito Federal poderão recorrer a sua memória afetiva.
      Não se trata de um romance estritamente político, apesar de tratar do tema, não há no romance uma obrigação panfletária, o protagonista e narrador, Martim, é mais um envolvido pelos acontecimentos políticos do que atua como um militante político. Encontramos entre os personagens: Collor, Golbery, Honestino Guimarães e outros. Obviamente todos sob alguma alcunha. Deixo duas passagens que bem expressam os ecos do nosso eterno presente no romance:

"Quando falam baixo, não escuto a conversa; às vezes não entendo tudo. Numa discussão tensa, um deputado perguntou ao Galindo: ´O que você prefere: um governo rígido mas honesto num Brasil próspero, ou um regime comunista totalitário num país estagnado?´
O velho gaúcho respondeu com uma segurança serena: ´Uma rede de criminosos que rasgou a Constituição pode ser chamda de governo honesto e rígido?´" pág. 151

"Minha biblioteca, Martim. Cada estante tem uma história. Os livros dessa estante de baixo foram salvos da fogueira. Dois estudantes queriam queimar todos os livros doados pelo embaixador dos Estados Unidos. O líder desse grupo é um magricela do curso de arquitetura, aquele lourinho que estudou no Elefante Branco e passou a noite com a gente na delegacia. O caria queria tocar fogo em tudo. Tirei uns livros da fogueira, ganhei eterna inimizade com esse grupo incendiário. Mas ganhei também peças de Tennesse Williams, a poesia de Walt Whitman, romances e contos de Faulkner. Todos chamuscados, mas dá pra ler..." pág. 132
       Os presentes dos amigos sempre têm prioridade na fila de leitura. Então, meu caro Ademir Luiz iniciei a leitura do Kundera, e quando encontramos pontos de confluência com o autor a leitura se torna ainda melhor. E penso que neste ponto, eu, você e o Kundera não divergimos. Ou seja, condenamos essa visão tosca que busca no artefato literário uma cópia da realidade associada a nova moralidade dos nossos tempos, o puritanismo "progressista".
          Segue um trecho que bem exemplifica a pobreza de quem quer ler um romance como uma epístola moral. Kundera busca nos primórdios do romance algo fundamental que está sendo esquecido.
"... É nessas passagens que o livro de Rabelais torna-se plena e radicalmente romance: a saber: TERRITÓRIO EM QUE O JULGAMENTO MORAL FICA SUSPENSO."
"Suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral. A moral que se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender. Essa fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto do vista da sabedoria do romance, a asneira mais detestável, o mal mais pernicioso. Não que o romancista conteste, no sentido absoluto, a legitimidade do julgamento moral, mas ele o envia para além do romance. Aí, se der vontade, acusem Panurge por sua covardia, acusem Emma Bovary, acusem Rastignac, isso é com vocês; o romancista não pode fazer nada"
"A criação do campo imaginário em que o julgamento moral fica suspenso foi uma proeza de imenso valor: somente aí podem desabrochar os personagens romanescos, ou seja, os indivíduos concebidos não em função de uma verdade preexistente, como exemplos do bem ou do mal, ou como representações de leis objetivas que se confrontam, mas como seres autônomos fundamentados em sua própria moral, em suas próprias leis. A sociedade ocidental criou o hábito de se apresentar como a dos direitos do homem; mas antes que um homem possa ter direitos, ele deve constituir-se como indivíduo, considerar-se como tal e ser considerado como tal; isso não poderia ter acontecido sem uma longa prática das artes europeias e especialmente do romance, que ensina o leitor a ter curiosidade pelo outro e a tentar compreender as verdades que diferem das suas..." Os Testamentos Traídos, Milan Kundera
"Sob a superfície do curso, raso e ligeiro,
do que dizemos que sentimos; sob a corrente,
assim ligeira, do que pensamos que sentimos - ali flui
em silenciosa torrente, obscura e profunda,
a central corrente do do que deveras sentimos."


Matthew Arnold

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A mente no mundo moderno


            No período das provas do ENEM, não custa lembrar desse Behemoth da vida cultural/educacional no Brasil, o bacharelismo. E mesmo que a ampliação do sistema público universitário se fizesse ilimitadamente, isto seria producente diante da indigência do sistema educacional básico? Por outro lado, quando vejo defesas efusivas do bacharelismo, tendo a concordar com autores que identificam nos movimentos intelectuais dos últimos 60 anos o avanço de uma linguagem hermética, que pouco se faz inteligível a quem não frequenta círculos avançados de pesquisa acadêmica. Sobre esse hermetismo de linguagem, especialmente nas Ciências Humanas, as quais na boca dos mais progressistas têm por função conscientizar as mentes alienadas, têm uma função social, indico o livro de Lionel Trilling, "A mente no mundo moderno". Sim, é pela "É realizações", uma editora conservadora, mas houve um tempo em que progressistas liam de tudo. É importante frisar, para os mais desavisados, Lionel Trilling foi um dos gigantes da crítica literária norte-americana (estadunidense para os mais progressistas), estando no mesmo nível de George Steiner. Texto conciso e claro, de 1972. Indico também sobre as misérias do mundo universitário, a leitura do livro, "A Cultura do Narcisismo", de Christopher Lasch. O qual merece uma nova edição em português.

                           Sobre a miséria que se tornou o pensamento nas universidades pós anos 1960, Trilling nos dá um panorama premonitório já no início dos anos 1970.

"Nas disciplinas de humanas, a situação é semelhante. Já pude mencionar a condição deteriorante da história. A filosofia parece ter se tornado disciplina técnica restrita a especialistas, não mais se permitindo dar espaço ao interesse e empenho de uma inteligência geral razoavelmente forte. Com minha disciplina, aquela dos estudos literários, a situação se complica ainda mais. Nas últimas décadas, grande parte do estudo da literatura partiu do princípio... de que as obras literárias não são tão acessíveis ao entendimento quanto à primeira vista podem parecer, desenvolvendo, assim, métodos elaborados e sofisticados de compreensão que inevitavelmente tendem a conferir, à literatura, aparência de disciplina esotérica só disponível ao especialista..." Lionel Trilling, A mente no mundo moderno, p. 24-25

                       A defesa do irracionalismo, ou seja, o elogio da intuição, da inspiração, da violência como formas mais adequadas que o pensamento racional baseado na objetividade.

"... Todavia, do modo como é concebida a autenticidade por aqueles que assumem posição contrária à mente, ela determina que só é real, verdadeiro e digno de confiança o que é experimentado sem intervenção do irracionalismo, enaltecendo a conquista de uma imediação experimental e perceptiva que se dá fora da alçada da mente racional. Os meios empregados para isso não são novos; conhecemo-los de outras eras. Entre eles encontram-se a intuição, a inspiração, a revelação; a aniquilação da individualidade (por meio da contemplação, talvez, mas também mediante o êxtase e várias formas de inebriamento); a violência; a loucura." p. 50-51

"...Em nossos dias, tornou-se possível reivindicar uma tal credibilidade à ideia de que a loucura é um estado benéfico, que deve ser compreendido como paradigma da existência e da cognição autênticas. Essa visão não é defendida somente por leigos curiosos, mas também por um notável segmento da psiquiatria pós-freudiana dotado de ampla  influência na comunidade intelectual. Essa posição é justificada mediante argumentos políticos. Diz o raciocínio que a insanidade está diretamente relacionada às estruturas e forças malignas da sociedade - não, porém, como um simples efeito passivo, mas como uma resposta ativa e significativa à vontade destrutiva que a sociedade tem. A insanidade é representada como uma percepção verdadeira que se realiza de maneira oportuna - a sociedade mesma é insana, e, quando isso é compreendido, a aparente aberração do indivíduo se afigura como racionalidade, como libertação das ilusões da loucura social. Da loucura ignorada sua dor lancinante, seu isolamento e sua distração - deve ser obtido  o princípio pelo qual a sociedade pode recuperar a razão e a humanidade perdidas. Um tal projeto pode ser tomado como medida do quão desesperado é o impulso de impugnar e transcender os limites da mente racional." pp. 52-53


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Vergílio Ferreira sobre alguns escritores brasileiros

         No livro Conta-corrente, volume 4, encontramos algumas manifestações de Vergílio Ferreira sobre alguns escritores brasileiros de sua preferência. Por se tratar de um diário, são relatos que demonstram apenas uma questão de gosto, como ele gosta de frisar. No dia 14 de março de 1982, Ferreira fala de Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo e Clarice Lispector. 

"E hoje a seguir ao almoço fui encontrar-me com a Lygia Fagundes Telles, conhecida e excelente escritora brasileira que aí veio ao Congresso dos Escritores e lançou um livro seu. Foi hora e meia de boa cavaqueira. Bela e ágil de espírito  como sempre, Lygia tem o dom difícil da simpatia não estandardizada. De tudo se falou  um pouco. Mas a certa altura eu disse-lhe o que de outras vezes tenho dito e é que há os autores que admiro, os que amo e os mais raros que simultaneamente admiro e amo.

- Pelo que se refere ao Brasil, um autor que admiro mas não amo, é por exemplo Guimarães Rosa, cuja linguagem é uma barreira que não consigo ultrapassar. Um escritor que amo com funda simpatia, mas não admiro muito, muito, é por exemplo o Erico Veríssimo que pude conhecer pessoalmente e sempre me encantou como o nosso Júlio Dinis. E escritores que amo e admiro são por exemplo a Clarisse Lispector e você. 

Ficou encantada. Além de mais, decerto, porque a Clarisse é reconhecidamente uma escritora de excepção." (p. 40-43) (preservei a grafia original do livro, uma edição portuguesa)

              A opinião de Ferreira sobre Guimarães Rosa pode chocar alguns, mas no mesmo diário, alguns dias depois o autor português volta a reler, Grande Sertão Veredas, e faz questão de reconhecer a importância do autor mineiro. 



Rua do Odéon



              Dois livros muito importantes sobre a vida literária parisiense na primeira metade do século XX são: Rua do Odéon e Shakespeare and Company. Esse último, de Sylvia Beach, publicado no Brasil pela Casa da Palavra em 2004,  já esgotado. E agora, em 2017, Rua do Odéon de Adrienne Monnier foi publicado pela Autêntica. Em ambos os livros lemos um relato da experiência das autoras enquanto editoras, donas de livrarias e militantes no mundo literário.
               Rua do Odéon é um belo relato do amor pelos livros, muitas vezes regado a muito lirismo e um profundo comprometimento com o leitor, com a divulgação e distribuição dos livros. Aqui deixo alguns trechos do capítulo: Elogio do livro pobre.

"Vamos tentar definir o ´livro pobre´. Trata-se, em suma, do livro barato, o mais barato, e sobretudo o mais desnudado de pretensões em sua forma. Não incluiremos nessa categoria de ´pobres´ aqueles que, apesar de seu preço módico, ganham formatos, ilustrações e mesmo coloridos afastados de toda modéstia. Não, o livro pobre é um livro de formato comum, preferencialmente menor que o comum, e cujos detalhes, todos, manifestam economia. O papel não é belo, é verdade, mas não pretende ser nem espesso, nem lustroso: é papel. A impressão  é apertada, corpo 9 no máximo, as margens são pequenas: é um impresso. A capa não se arrisca a uma nudez orgulhosa; prefere um fio simples ou duplo, com cantos suavizados por um arabesco ou algum pequeno jogo de linhas... (p.39)

Guardo uma lembrança muito terna da Bibliothèque Nationale, porque foi ela que me deu, quando eu era criança, os primeiros elementos de minha cultura literária. Minha mãe comprava nos cais tudo o que encontrava dela  e deixava que nós, minha irmã e eu, fizéssemos todo o uso. Para ela e para nós, eram  menos livros do que pequenos veículos imateriais que nos transportavam ao reino do espírito. Nunca sua  aquisição pesou em nossa bolsa, eram dados, como a água e o sol. Os centavos que nos custavam não eram verdadeiramente  uma despesa, mas um óbolo vertido alegremente nas portas do templo. (p. 43)

Certamente eram pobre e feitos para os pobres, e todavia eu lhes devo a mais verdadeira e mais duradoura das riquezas. Foram eles que me fizeram conhecer Ulisses, Dom Quixote, Panurge, Gulliver, Robinson Crusoé, Fausto, Hamlet e o Rousseau das Confissões. Foi por meio deles que me aproximei de Dante, Shakespeare e Milton. Epiteto chegou a mim sob sua capa, e essa capa era-lhe perfeitamente adequada. (p. 43)

... A ideia de valor material não limitava o movimento do espírito. Lembro-me de um Dom Quixote de que havíamos encontrado os quatro volumes com a lombada nua, sem capa, amarrados por um grosso barbante que marcava duramente as páginas. Esse triste estado,  longe de nos afligir, havia nos alegrado ainda mais, na medida em que era a causa de um excessivo baixo preço. E nunca, em nenhuma edição, conheci melhor o cavaleiro da triste figura. (p.43-44)

Sim, pensando bem, parece-me certo que os grandes livros nunca estão tão bem instalados como quando estão nos livros pobres, na verdade só são mesmo grandes assim. São os livros pobres que lhes asseguram uma circulação obscura, vital, como o curso do sangue; são eles que, por sua humildade, lhes mantêm a glória; são eles que lhes dão a liberdade de que têm necessidade para seguir seu destino e para ultrapassá-lo; são eles que fazem o melhor para torná-los imortais." (p.44)


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O verdadeiro professor

         No livro, Antes do Fim, Ernesto Sabato faz uma curta autobiografia memorialística onde relembra experiências marcantes em sua vida.  Entre elas há um belo relato sobre sua experiência com Pedro Henríquez Ureña, intelectual latino-americano com obra ensaística reconhecida internacionalmente.  É tocante o relato da fala de Pedro Henríquez Ureña, sua humildade e censo de dever, algo bastante diferente do delírio grandiloquente da aristocracia de cátedra que há no Brasil, nas universidades públicas.

"Na época em que eu cursava o primeiro ano, soubemos que teríamos como professor um ´mexicano´, que a rigor era portoriquenho. E sinto um nó na garganta ao recordar a manhã em que vi entrar na sala de aula esse homem silencioso, aristocrata em cada um de seus gestos, que com palavra comedida impunha uma secreta autoridade: Pedro Henríquez Ureña. Um ser superior, tratado com mesquinharia e reticência por seus colegas, com o típico ressentimento dos medíocres, a ponto de nunca ter chegado a professor titular de nenhuma das faculdades de letras.

        A ele  devo minha aproximação aos grandes autores, e sua sábia advertência que ainda recordo: ´Onde termina a gramática começa a grande arte´. Porque ele não era partidário de uma concepção purista da linguagem, ao contrário, estava perto de Vossler e Humboldt, que consideravam o idioma uma força viva em permanente transformação...
        Mais tarde, voltando a viajar de trem, sonhei com encontrar esse professor do meu secundário, sentado em algum vagão, com a valise cheia de lições corrigidas, como daquela vez - há tanto tempo! - em que viajamos juntos e eu lhe perguntei, condoído de ver como ele dedicava os anos a tarefas menores, ´Por que, don Pedro, o senhor perde tempo com essas coisas?´. E ele, com seu amável sorriso, respondeu: ´Porque entre eles pode haver um futuro escritor´.
        Quanto devo a Henríquez Ureña!..." Ernesto Sabato, Antes do Fim. páginas 37-38


       "Nos penhascos de Mármore", Ernst Jünger apresenta-nos um espetacular uso da linguagem ao retratar alegoricamente o nazismo, sem deixar de mostrar os seus aspectos mais sombrios. Deveras, justificam-se os elogios de Antônio Cândido a este livro.
"... Depois que ele entrou no celeiro, passamos a ouvir o ruído de pancadas e de raspagem na mesa de esfola, além da cançãozinha que ele continuava a assoviar num tom de jovialidade espectral. Ouvimos então, como se estivesse a acompanhá-lo, o vento perpassar o pinheiral, de modo que os alvos crânios que pendiam das árvores chocalhavam em coro. Ao sopro do vento associavam-se ainda a batida dos tacões do homenzinho e o ruído de atrito das mãos secas na parede do celeiro. O barulho das pancadas e dos crânios que se chocavam lembrava uma encenação de marionetes no reino da morte. Ao mesmo tempo um persistente, pesado e doce cheiro de putrescência pairava no ar e nos fazia estremecer até a medula. Sentíamos como em nosso íntimo a melodia da vida se propagava por sua corda mais profunda e sombria. Mais tarde, não saberíamos dizer por quanto tempo havíamos observado essa cena - talvez não tenha sido mais que um instante. Então, como que despertos, tomamo-nos pelas mãos e corremos para o seio da mata do Corno do Carrasco, enquanto o grito do cuco nos acompanhava desdenhoso. Acabáramos de conhecer a sinistra cozinha da qual partia a névoa que vagava até Marina - uma vez que não arredávamos dali, o velho mostrou-a para nós de um modo relativamente preciso. Tratava-se dos porões sobre os quais se erguem os castelos da tirania e a partir dos quais se vêem evolar as fragrâncias de suas festas: antros fétidos da espécie mais sinistra. Dentro deles, por toda a eternidade, uma canalha abjeta se regozija de modo pavoroso na profanação da dignidade e da liberdade humana. Calam-se então as musas, e a verdade começa a vacilar como a chama exposta aos ventos da tempestade inclemente..."  Nos penhascos de Mármore, páginas 113-114
           "Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível..." Vergílio Ferreira, Aparição.
         "A história é mais complicada, mais complexa, mais ambígua e contraditória do que as filosofias da história tentam nos fazer crer. Para o historiador, que baixa os olhos em direção às asperezas da terra em vez de elevá-los em direção a um céu sem nuvens, a história não tem um fim, um único fim, nem mesmo, em consequência um final. O filósofo da história pode se permitir atuar como profeta, o historiador deve limitar-se a fazer prudentes previsões com base em proposições hipotéticas ´se-então´." Norberto Bobbio, Direita e esquerda.

Campos de Castela de Antonio Machado

          Recomendo a compra do livro, Campos de Castela, de Antonio Machado. Trabalho editorial fundamental da Editora Caminhos.

"É melhor dentre os bons
que sabe que nesta vida
tudo é questão de medida:
subir, baixar semitons..."
                                        Antonio Machado

"Nem tem sabor o fruto
colhido ainda verde...
Nem por louvar-te um burro
tornou-se inteligente."
                                       Antonio Machado
(Provérbios e cantares, retirado do livro, "Campos de Castela", publicado pela Editora Caminhos de Goiânia)


https://l.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fwww.livrariacaminhos.com.br%2Fpd-11aba2-antonio-machado-campos-de-castela-pre-venda.html%3Fct%26p%3D1%26s%3D1&h=ATOLyDw91_xVY3XIicGj0Rqbpx8OZ5foRuVJNKbnP4YjcHbiFbEep0Dc1KvDnh0ljb9VLV6LnMMA9RV-yc587JehqDBeZJo99kbrsdb_ShdEJNXXcagyOGW-A4E9ocwMvQCzMXmWH9PecExtIxH2Oll8cCauktsKDqWieBgl1GQE0CpafDquPuXfgtdwuKITs1YpcgqjO1mYTSWA__R6gCZBCYbufnc_jo1Xl94_MBUYJCySzsSpwwWZSeKWauELbP9j03uG0oFFkD7bRwOV2gTANNZJJjreXvw-bMxS8VrP

Coleção Fernando Pessoa pela Editora Tinta da China


             Aos apreciadores da obra de Fernando Pessoa, eis uma coleção primorosa.





"...Que este mundo que nos coube seja o das florestas sombrias, da aridez desabitada - é isso uma certeza que nos não destrói, porque a vida é evidente por si; e ainda que a alegria nos não visite, essa alegria que eu imagino para ti, ficou-nos ao menos a plenitude de ver, de saber iluminadamente, de assumir. A redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites..." Vergílio Ferreira, Carta ao futuro

Sabato encontra Cioran

            Encontro de Ernesto Sabato com Emil Cioran em Paris, 1989. Ambos com 78 anos na época.
"Conversamos fraternalmente durante mais de quatro horas... Descobri em Cioran a coerência de um homem autêntico, e partilhamos pensamentos de notável semelhança. Como a necessidade de desmistificar o racionalismo que só nos trouxe a miséria e os totalitarismos. E também a imbecilidade dos que crêem no progresso e no avanço da civilização. ´Tudo pode ser sufocado no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, assim como ao desaparecimento da religião sobre a terra.´Palavras de um filósofo cuja lucidez era fruto de sua perplexidade e seu tormento.
Tenho a convicção de que sua dor metafísica teria se atenuado se ele tivesse podido escrever ficção, dado seu caráter catártico, e porque os graves problemas da condição humana não são aptos para a coerência, mas unicamente acessíveis a essa expressão mitopoética, contraditória e paradoxal, como nossa existência.
´Na tristeza tudo vira alma´, diz ele em um de seus ensaios que tanto ajudaram a desmascarar a frivolidade e os sorrisos hipócritas dos tempos que correm." Ernesto Sabato, Antes do fim. pág. 118

terça-feira, 20 de junho de 2017

"Eu não acredito, torpe Liébediev, nas carroças que transportam comida para a humanidade! Porquanto as carroças que transportam comida para toda a humanidade, sem o fundamento moral do ato, podem excluir com o maior sangue frio uma parte considerável da humanidade do prazer com o transportado, o que já aconteceu..." Dostoiévski, O idiota. pág. 419

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Philip Roth sobre os governos e a cultura

        Muito interessante a reflexão de Philip Roth sobre a cultura nacional e a influência dos governos sobre a mesma. No Brasil a esquerda exige que os governos devam bancar e dirigir a cultura nacional, desde que orientados por sua matriz ideológica. Não importa o quanto isso possa ser nefasto em termos de controle e perda da autonomia. No final das contas, todos querem uma migalha do Estado, com a ilusão de não perder sua liberdade e autonomia, o que se provou impossível historicamente.

xxx


"... Em uma imensa sociedade comercial, que exige completa liberdade de expressão, a cultura é uma pança. Há pouco, o primeiro romancista americano a receber uma Medalha de Ouro especial do Congresso por sua ´contribuição à nação´ foi Louis L´Amour. Foi-lhe entregue na Casa Branca, pelo presidente. O único outro país do mundo onde tal escritor receberia o maior prêmio do governo é a União Soviética. Entretanto, em um estado totalitário, toda cultura é imposta pelo regime; felizmente nós, nos Estados Unidos, vivemos na república de Reagan, não na de Platão e, com exceção dessa estúpida medalha, a cultura é quase completamente ignorada. E isso é bem mais preferível. Enquanto os que estão no controle ficarem fazendo homenagens a Louis L´Amour e não se importarem com mais nada, tudo estará bem. A primeira vez que estive na Tchecoslováquia, veio-me à mente que trabalho em uma sociedade onde, como escritor, tudo vale e nada tem importância, enquanto que, para os escritores tchecos que conheci em Praga, nada vale e tudo tem importância. Isso não quer dizer que eu gostaria de trocar de lugar. Não fiquei com inveja da perseguição que sofrem e da forma como isso aumenta a importância social deles. Nem mesmo senti inveja de seus temas aparentemente mais sérios e importantes. A vulgarização, no Ocidente, de muita coisa que é extremamente séria no Oriente, já e um assunto, um assunto que exige considerável talento imaginativo para se transformar em ficção atraente. Escrever um livro sério que não evidencie sua seriedade por meio das insinuações retóricas ou importância temática, tradicionalmente associadas à seriedade, também é um empreendimento válido. Fazer justiça a uma condição espiritual que não choca de forma espalhafatosa  nem horripila de forma monstruosa, que não desperta compaixão universal nem acontece em um grande teatro histórico ou na maior escala de sofrimento do século XX - bem, essa é a sina dos que escrevem onde tudo vale e nada tem importância. Ouvi, recentemente, o crítico George Steiner denunciar, pela televisão inglesa, que a literatura ocidental contemporânea é completamente desprezível e sem qualidade e proclamar que os grandes documentos da alma humana, as obras-primas, só podem surgir de espíritos que estão sendo subjugados por regimes como o da Tchecoslováquia. Gostaria, então, de saber por que todos os escritores da Tchecoslováquia que conheço abominam o regime e desejam ardentemente que ele desapareça da face da terra. Não entendem, como Steiner, que esta é a oportunidade que têm de ser grandes? Às vezes, um ou dois escritores, com colossal força bruta, conseguem, por milagre, sobreviver e, tomando o sistema como assunto, transformam a perseguição que sofreram em arte de alta categoria. Mas a maioria deles, que permanece impedida de se manifestar dentro dos estados totalitários, é de escritores destruídos pelo sistema. Esse sistema não cria obras-primas; cria tromboses coronárias, úlceras e asma, cria alcoólatras, cria depressivos, cria amargura, desespero e loucura. Os escritores ficam desfigurados intelectualmente. São, com frequência, completamente silenciados. Nove décimos dos melhores deles jamais realizarão uma obra-prima, só por causa do sistema. Os escritores promovidos por esse sistema são os mercenários do partido. Quando tal sistema prevalece por duas ou três gerações, implacavelmente oprimindo uma comunidade de escritores durante vinte, trinta ou quarenta anos, as obsessões se tornam fixas, a linguagem se deteriora, o hábito da leitura desaparece aos poucos e a existência de uma literatura nacional com originalidade, variedade, vibração (que é muito diferente da brutal sobrevivência de uma única voz convincente) torna-se quase impossível. A literatura que tem a má  sorte de permanecer isolada, às ocultas por muito tempo, tornar-se-á  inevitavelmente provinciana, atrasada, ingênua mesmo, apesar do cabedal de experiência sombria que possa inspirá-la. Em contraste, aqui, nossa obra  não foi privada de autenticidade, porque não fomos reprimidos como escritores por um governo totalitário. Não sei de nenhum escritor ocidental, com exceção de George Steiner, que esteja tão pomposa e sentimentalmente iludido sobre o sofrimento humano - e ´obras-primas´ - a ponto de voltar da Cortina de Ferro julgando-se desvalorizado porque nunca teve de lutar contra um ambiente intelectual e literário tão deprimente. Se a escolha for entre Louis L´Amour, nossa liberdade literária e nossa vasta e ativa literatura nacional de um lado, e Soljenitzyn, o deserto cultural e a repressão esmagadora do outro, ficarei com L´Amour." Philip Roth em entrevista à Paris Review, 1983-1984. páginas 364-366

domingo, 18 de junho de 2017

            "Disseram que a literatura é o ´sorriso da sociedade´. Julgo isso estupidez e safadeza. Não escrevemos para dar prazer aos idiotas..." Graciliano Ramos. Folha do Povo, 1949.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

"Não quero mais correria, pressa, velocidade... Ultimamente ando irritadiça e exausta, resisto, mas sou sempre arrastada pela pressa dos outros desde que a gente passou a viver, se mover, se informar, pensar e se comunicar com o máximo de velocidade possível segundo os diários e ruidosos lançamentos de novas geringonças eletrônicas, prometendo cada vez mais velocidade. Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave! E quem pode, assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? Rapidez obrigatória não combina com reflexão, raciocínio complexo, construção de argumentos fundamentados, avaliação crítica e honesta do argumento alheio, recuperação da memória, verificação conscienciosa das informações recebidas, pensar e julgar com ideias e valores coerentes e abrangentes. Sem isso, não é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, a intolerância e a violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em qualquer disputa parece ter sido a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone bombardeiro..." Maria Valéria Rezende, Outros Cantos. p.72-73
Sobre o livro, "O que é fascismo? E outros ensaios", de George Orwell, são necessárias algumas considerações:
a) Edições que mencionem o termo "fascismo" ganham notoriedade rapidamente e vendem bastante. Daí o afogadilho para publicá-las, e muitas vezes a omissão de certas informações;
b) No caso dessa edição da Cia das Letras, o prefaciador e tradutor, Sérgio Augusto afirma que os textos recolhidos são inéditos no Brasil, e que as outras coletâneas de ensaios de Orwell são todas da referida editora, pelo menos neste século;
c) Na verdade há uma edição de ensaios e resenhas, publicada em 2006 pela Zahar Editores. Aliás, mais ampla que a da Cia das Letras. O título da publicação é "Literatura e Política", na qual podemos encontrar vários ensaios interessantes sobre a guerra em andamento, e algumas resenhas sobre livros importantes do ponto de vista político e literário, tais como: "o caminho da servidão" (Hayek), "Por que a França caiu" (Bernanos), "Flores do Mal" (Baudelaire), entre outros;
d) Então, como tenho muito tempo, coligi as duas edições, e o alentado ineditismo dos 24 textos propalado pelo tradutor e prefacista não se sustenta. Três textos da edição agora lançada pela Cia das Letras constam na edição da Zahar Editores, são eles: "Resenha - O negro do Narciso, Tufão, A Linha de sombra, Dentro das marés, de Joseph Conrad"; "Resenha - A alma do homem sob o socialismo, de Oscar Wilde"; " Resenha - Notas para uma definição de cultura, de T. S. Eliot". Na edição da Zahar Editores, esses três textos receberam os respectivos títulos: "Um homem do mar","A utopia de Oscar Wilde", "A cultura e as classes".
e) Finalmente, é importante ressaltar que os textos sobre o fascismo são inéditos, assim como algumas outras resenhas. É mais uma importante coletânea disponível para os leitores. No entanto, não deixo de considerar que a ligeireza em publicar devido ao tema proporciona certos equívocos.
Num colóquio sobre a obra de Dalton Trevisan na USP, homenageando os seus 90 anos, alguns conferencistas reclamavam da ausência de estudos sobre a obra do autor. E lemos por aí conclamações para que se produzam estudos sobre autoficção juvenil. É preciso o trabalho da linguagem, da escrita, não basta usar palavras ditas "transgressoras" para se fazer boa poesia ou prosa. Segue um exemplo do próprio Trevisan, onde o subentendido exige algo do leitor.
"Afofa os dois travesseiros para ler o jornal, nunca mais abriu um livro. Uma vez por semana, com repugnância e método, entrega-se ao prazer solitário - o mísero consolo do viúvo. Afinal vem o sono, aninha-se nas cobertas e dorme, o eterno grilo debaixo da janela." Dalton Trevisan, conto "Angústia do viúvo", presente no livro, Cemitério de Elefantes. Edição de 1977.

domingo, 23 de abril de 2017

            Melhor faz aquele que carrega um cadáver insepulto dos seus pecados. Pois o seu cheiro fétido é o aviso adequado contra a tentação do discurso virtuoso e a promoção de autos-de-fé.


            Postei recentemente o poema, Táctica y Estrategia, de Mario Benedetti. Agora deixo a versão em português que consta no livro, "O amor, as mulheres e a vida (Antologia de poemas de amor)", publicado no Brasil pela editora Verus,2010. A tradução dos poemas é de Julio Luis Gehlen.

Tática e estratégia
Minha tática é
                                olhar-te
aprender como és
querer-te como és

minha tática é
                                falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é 
ficar na tua memória
não sei como          nem sei
com que pretexto
mas ficar em ti

minha tática é
                              ser franco
e saber que és franca
e que não nos vendamos
simulacros
para que entre os dois
não existam véus
                             nem abismos
minha estratégia é
no entanto
mais profunda e mais
                             simples

minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como        nem sei
com que pretexto
por fim                  me necessites.


Mario Benedetti

domingo, 9 de abril de 2017

          Dalton Trevisan é subestimado pela crítica literária, neste domingo, 09 de abril, esse artífice da escrita foi menosprezado quando comparado a Rubem Fonseca. Trevisan seria um provinciano, segundo um crítico da Folha de São Paulo. Trevisan escreve sobre Curitiba no que ela tem de universal, não por acaso hoje fiz a leitura deste texto, e vejo-o como universal, pois tematiza o cotidiano que é comum não só aos paranaenses da capital, mas de todos os brasileiros.


LAMENTAÇÕES DA RUA UBALDINO

...
em vez do culto em surdina
propagas o escândalo sobre os telhados
sons malignos que não se podem aturar
de altíssimos que são
o Senhor dos  Exércitos enviará maldição
aos predadores do sossego
és tu cenobita
atormentador do teu vizinho?
essa igreja central é um estrondo
deixou passar o tempo assinalado
morada de dragões
matracas e baitacas
onde o fiscal?
onde a lei do silêncio?
onde o que conta os decibéis?
o inimigo da Rua Ubaldino
nesse mesmo número 666
uiva baterista clama guitarrista 
rebolai-vos no pó da danação
à tua porta já batem as duas ursas
chamadas por Elias
cala-te aquieta-te irmão cenobita
afasta de nós esse cálice da balbúrdia
e da aflição do espírito
casa de oração convertida em covil
de salteadores da paz
não o pão
mas a pedra dodecafônica
não o peixe
mas a serpente da caixa de ressonância
não o ovo
mas o escorpião do amplificador
amigo a que vieste?
mais fácil passar um camelo
pelo fundo da agulha
do que entrar um guitarrista cenobita
no reino de Deus
dura é essa barulheira
quem a pode suportar?
filhos da Rua Ubaldino chorai
sobre o fim da paz e do sossego
ah! espado do Senhor
até quando descansarás na tua bainha?


Dalton Trevisan


sábado, 1 de abril de 2017

Realização e angústia

              "Ao passo que o homem, ao se levantar sobre as patas traseiras e transformar em machado a primeira pedra lascada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; pois com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos ele viria a erigir essa construção tão poderosa e estranha chamada cultura, iniciando assim seu grande drama: deixará de ser um simples animal, mas nunca chegará a ser o deus que seu espírito sugere. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá  perdido o paraíso terrestre de sua inocência sem ganhar o paraíso de sua redenção." Ernesto Sabato, A resistência. pág. 78

sexta-feira, 31 de março de 2017

             Mário de Andrade em resenha sobre o livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, fez uma crítica muito interessante e atemporal quanto a certa romantização da miséria humana. Romantização literária que esvazia o sofrimento humano, ao invés de denunciá-lo. A resenha foi escrita em 1930, e depois compilada no livro, Táxi e crônicas no Diário Nacional.

“... O defeito da arte é mesmo transportar os maiores horrores da humanidade e da Terra pra um plano hedonístico, tão contemplativo e necessariamente diletante, que a gente está chorando na leitura e não sofre nada. Chora que é uma gostosura. As dores de fundamento estético, por mais suicídios que tenha causado o Werther, não fazem mal pra ninguém. Pelo contrário: desvirtuam a nossa humanidade, literatizam nossos deveres humanos que em vez de se tornarem ativos e eficientes, se desmancham nas misérias das frases bonitas, na recordação das obras de arte e em piedades oratórias. Estou convencido que o livro de Euclides fez um mal enorme pros brasileiros e dificultou vastamente o problema das secas. Fez da seca uma obra de arte, e nós adquirimos, por causa dele, uma noção tangencial dos nossos deveres pra com o Nordeste, uma noção derivada, quase que de função puramente literária. A seca virou bonita e nos nossos deveres, a própria consciência dos nossos deveres, ficaram bonitos também. Quase existe dentro de nós uma razão importantíssima e jamais expressa:  Deixem a seca como está porque se o problema dela for resolvido, o brasileiro perde a mais bonita razão pros seus lamentos e digressões caritativas. Desconfio que nenhum brasileiro terá coragem de confessar a desumanização de origem artística causada nele pela maravilhosa literatice de Euclides da Cunha, mas, queiram ou não queiram, os fatos estão aí provando esta afirmativa urtigante...”  Retirado da fortuna crítica ao livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, 105 ed. p.172-173
            Maria Valéria Rezende lê o trecho inicial do seu livro "Vasto Mundo".

" Eu os conheço a todos. Reconheço-os pelas pisadas e por elas sei de seus humores, de seus sentimentos, de suas urgências, preguiças, de seu contentamento ou aflição. Sei de sua grandeza e mesquinhez. Leio seus passos quando apenas roçam minhas lajes em corridas alegres de pés pequenos ou quando me oprimem com o peso de suas vidas inteiras. Foi seu tropel incessante que me despertou do meu sono de pedra. Só eu os conheço a todos porque só eu estou sempre neles como eles estão em mim. Eles me criaram e agora eu os crio. Quero-os como são porque quando eles deixarem de ser, tampouco eu serei. Não os posso fazer como eu os quisera, sempre formosos, felizes, generosos e livres, mas como mãe os crio, tais quais me vieram, acolho-os. Sou seu chão. Vejo tudo e não os julgo, sei apenas que são humanos e me comovem. Pela linguagem de seus pés, vou desenleando suas histórias uma a uma. Vivem eles mesmos, a vida toda, a narrar, narrar-se, passado, presente e futuro. Meus ouvidos de terra, pedra e cal ouvem, e aprendo. Creio ter compreendido que nisto consiste o serem humanos, em poderem ser narrados, cada um deles, como uma história." Maria Valéria Rezende, Vasto Mundo.




terça-feira, 28 de março de 2017

TÁCTICA Y ESTRATEGIA
Mi táctica es
mirarte
aprender cómo sos
quererte como sos

mi táctica es
hablarte
y escucharte
construir con palabras
un puente indestructible

mi táctica es
quedarme en tu recuerdo
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
pero quedarme en vos

mi táctica es
ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón
ni abismos

mi estrategia es
en cambio
más profunda y más
simple

mi estrategia es
que un dia cualquiera
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
por fin me necesites.

Mario Benedetti

Os últimos versos de Nócion de Patria

...
Quizá mi única nócion de patria
sea esta urgencia de decir Nosotros
quizá mi única noción de patria
sea este regresso al proprio desconcierto

                                                    Mario Benedetti
"Precisamos falar porque precisamos insistir que a literatura e a grande mestra - certamente maior do que qualquer religião - da sutiliza humana, e que uma sociedade, ao interferir na existência natural da literatura e na capacidade humana de aprender com a literatura, reduz seu potencial, diminui o ritmo de sua evolução e em última análise põe em risco, talvez, sua própria estrutura. Se isso significa que precisamos falar sobre nós mesmos, que seja: não por nós mesmos, mas talvez pela literatura." Sobre o exílio, Joseph Brodsky

sexta-feira, 17 de março de 2017

"Uma vida onde eu poderia me lembrar desta vida daqui!"


Do romance,´O Caso Meursault', que como contraponto ao "Estrangeiro" de Camus, acaba por ficar preso na  linguagem e pensamento ocidentais. Não se trata de uma crítica, mas a afirmação justifica-se pela promessa dos editores e resenhistas sobre o livro, colocando-o como uma crítica a visão eurocêntrica de Camus em relação à Argélia e ao seu povo.

"Eu, berrando ao microfone enquanto eles tentam arrombar a porta do minarete para calar a minha boca. Tentariam fazer com que eu fosse razoável, diriam, em pânico, que há outra vida apos a morte. E eu, então, responderia: ´Uma vida onde eu poderia me lembrar desta vida daqui!´. E aí eu morreria, apedrejado, talvez, mas com o microfone na mão, eu, Haroun, irmão de Moussa, filho de pai desaparecido. Ah, que belo gesto de mártir! Gritar a sua verdade nua e crua. Você vive em outro lugar, você não pode compreender o que sofre um velho que não acredita em Deus, que não vai à mesquita, que não esperava pelo paraíso, que não tem mulher nem filho e que exibe a sua liberdade como uma provocação." O Caso Meursault, Kamel Daoud. p.162

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Desses pudores de gente ranzinza, de economizar adjetivos, vou fugir ao hábito e tecer loas ao português Valter Hugo Mãe. Escrita lírica, sensível e tocante.

"O homem que chegou aos quarenta anos imaginou loucamente o umbigo a dilatar. Imaginou que o umbigo abria muito e que a barriga toda se começara a levantar e a revolver. Tombou sobre si mesmo e achou que sentia o corpo como dividindo-se. Achou que talvez dividisse o corpo por ter dentro de si uma vontade múltipla, um desejo de ser mais do que um só. A solidão podia transformar os homens em seres quase de fantasia por lhes mexer na cabeça e obrigar o coração a legitimar como verdadeira a mais pura ilusão. Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos a estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais as alegrias deles do que a satisfação que directamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, nunca o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser. O homem que chegou aos quarenta anos deitava-se como louco a pensar que falhar nos amores não podia impedir a divisão, porque vivia dividido. Havia dentro de si, maduro, uma amor pronto para entrega, um tesouro pertença de alguém que já não ele, e alguém teria de vir para o tomar. Chamava-se Crisóstomo." Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens. p.197

domingo, 5 de fevereiro de 2017

           A literatura pode nos ajudar a reconhecer o outro, suas demandas, muitas vezes com mais sucesso do que o melhor dos libelos políticos. E mesmo que o texto literário, o romance, tenha uma intenção política, se bem escrito e com as qualidades do bom texto, então melhor será o efeito de sua mensagem.
"...Desde o começo, já se entende tudo: ele tinha um nome de homem, meu irmão, o nome de um acidente geográfico. Ele poderia tê-lo chamado de ´Catorze Hora´, como um outro chamou o seu negro de ´Sexta-Feira´. Um horário do dia, em vez de um dia da semana. Catorze Horas, seria interessante... Um árabe breve, tecnicamente fugaz, que viveu duas horas e morreu ao longo de setenta anos ininterruptos, mesmo depois de seu enterro..."
"...Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até a sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi meu irmão, não ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? Há uma coisa que me deixa pasmo. Ninguém, mesmo depois da Independência, procurou saber o nome da vítima, seu endereço, seus antepassados, seus eventuais filhos. Ninguém. Todos ficaram de queixo caído diante daquela linguagem perfeita, que molda o ar como um diamante, e, diante da solidão do assassino, declararam solidariedade, apresentando-lhe as mais eruditas condolências. Quem poderia me dizer, hoje, o nome verdadeiro de Moussa? Quem sabe qual foi o rio que o levou ao mar que ele deveria atravessar a pé, sozinho, sem povo algum, sem nenhum cajado miraculoso? Quem sabe dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia ou insolação?" O Caso Meursault, Kamel Daoud

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Teoria e Celebração, Lêdo Ivo



              Livros de crítica literária nem sempre estimulam o leitor a ler as obras analisadas; muitos deles tornam os leitores amedrontados diante das obras. Não é o que acontece com o livro do poeta e romancista Lêdo Ivo. Após ler Teoria e Celebração nos sentimos estimulados a ler os autores analisados, trata-se de uma crítica livre dos aprisionamentos presentes nas teorias literárias; encontramos desde a análise mais estrita da obra até os detalhes não muito elogiosos da vida dos autores. É uma crítica literária que se assemelha muito a praticada durante o início do século XX, onde o conhecimento sobre a literatura não era ditado pela Universidade, e sim pelos próprios autores e pessoas que vivenciavam o mundo das letras.
                Em Teoria e Celebração encontramos ensaios sobre a obra de José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, Raul Pompéia, Augusto dos Anjos, Agrippino Grieco, Manoel Bandeira, Graciliano Ramos, Cornélio Penna, José Lins do Rego e Marques Rabelo; estão presentes romancistas, poetas e um crítico literário (Agrippino Grieco). Ao final do livro temos um ensaio sobre “A morte da literatura brasileira”. Interessante observar a simplicidade da linguagem, obviamente sem ser pobre, mas objetivando a clareza; os autores são apresentados em suas grandezas e misérias, no final desejamos conhece-los melhor do que já foram apresentados por Lêdo Ivo. Teoria e Celebração foi publicado em 1976, pela Livraria Duas Cidades.
            Para não entregar as joias do livro sem que o mesmo seja lido, selecionei algumas passagens do texto sobre “A morte da literatura brasileira”, nele encontramos uma radiografia do mal que a Universidade pode fazer com a literatura e com os leitores.

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“O Terror que mata as letras está na comunicação pedagógica ou para/pedagógica que considera a teoria mais importante do que a prática. Digamos sem medo: o carrasco é o teórico ou exegeta que embalsama o texto vivo, o censor é o professor. Uma cátedra de Teoria Literária exerce, sobre a criação artística, atuação semelhante à dos zelosos servidores públicos que lêem antecipadamente as peças de Plínio Marcos ou escutam as canções de Chico Buarque de Holanda. Em vez de ensinar aos alunos como devem proceder para criar, o cognominado mestre inocula neles a ilusão de que a teoria tem mais importância do que um soneto de Baudelaire ou um conto de Machado de Assis. Espalha a mentira de que a Poesia fugiu para a música popular, e não há mais lugar para novos poetas de gabinete, quando o certo é que um Chico não sucede a um Bandeira, mas a um Noel Rosa. Transmite-lhes a impostura de que, sem o teórico, nada feito, quando é exatamente o contrário: tudo está feito antes da teoria literária, e contra ela, ou à sua revelia, no universo das transgressões inesperadas e sucessivas. ” p.138-139
“... Os professores impõem aos alunos as regras aterrorizantes de Todorov, Kristeva, Barthes e Adorno. (E tenho autoridade para fazer esta crítica, já que, meses atrás, uma professora da Paraíba me comunicou estar produzindo uma monografia sobre as subestruturas significantes nos segmentos não-discursivos do meu romance Ninho de Cobras, que é apenas uma história mal contada, como as dos ciganos ou ladrões de cavalos.) Ou, então, estabelecem critérios discriminatórios, pelos quais a literatura, em vez de ser uma totalidade, se estilhaça em fragmento e pormenor; resume-se a alguns autores, beneficiados por certa máfia pedagógica, com a exclusão implacável de outros. Querem exemplo mais legítimo do Terror do que este, que faz da literatura um clube de amigos ou um coito de cúmplices, quando ela é por sua própria natureza uma ocorrência aberta, uma tradição ininterrupta, uma ilimitada galáxia verbal? ” p.139-140.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Entrevista com Cornélio Penna

         No livro, "Teoria e Celebração" (Livraria Duas Cidades, 1976), Lêdo Ivo nos apresenta uma entrevista com Cornélio Penna. Não há indicação de data, mas de acordo com a fala de Penna, ele ainda não havia publicado "A Menina Morta", tinha escrito alguns capítulos.
           Abaixo seguem alguns trechos que selecionei da entrevista, conforme o meu interesse. Aos interessados vale a pena comprar o livro, e conferir os ensaios sobre vários escritores brasileiros e a entrevista com Penna.

Autores russos

"...Mas eu lia até duas e três horas da manhã, sempre dentro da desordem costumeira, e, aos quinze anos, quando terminei o quarto ano ginasial, fomos para São Paulo, onde, de 1914 a 1918, devia curar a Faculdade de Direito. Já então eu tinha descoberto os russos e vivia unicamente entre os heróis de Dostoiévski, de Púchkine, de Gorki, Gontcharof, Tolstoi, Leskov e tantos outros, e, ao mesmo tempo, comecei a só me vestir de preto ou de escuro. Sentia-me profundamente infeliz, e gostava muito de discutir sobre os destinos finais do homem, mas continuava certo de que era pintor." p. 109

O primeiro romance

" - Como lhe contei, meus pais foram para Itabira do Mato Dentro, e eu estive lá por um ano. Mais tarde, em 1917, fui assistir à morte de minha avó paterna, a dona do Jirau, da gigantesca jazida de ferro, da mineração do Major Paulo José de Sousa, que há século e meio a explorava, manufaturando o ferro colhido com processos considerados os mais adiantados da época, e lá estive dois meses. Depois, em 1937 e 1939, lá voltei por três ou quatro dias. Mas a vida da cidade, o espírito sombrio de seus habitantes, as histórias de impressionante força de caráter, de invencível coragem no drama que tudo lá representa, tinham ficado gravadas em meu cérebro e em meu coração de tal forma, toda minha vida, que só pude me libertar de sua obsessão escrevendo. Pedi a muitos escritores que o fizessem, que se voltassem para o tesouro que representava a alma dos itabiranos, mas não consegui interessar a nenhum deles, e assim foi que escrevi Fronteira, que consegui publicar em 1935, e que representou para mim apenas um desabafo, uma confidência, ou melhor, uma confissão pública, a compreensão de Itabira..." p.111

A vida dos escritores

"... A mim não me interessam absolutamente fatos da existência dos escritores que leio com mais frequência, e tenho por sistema não ler nunca biografias, nem, e principalmente, as autobiografias e os manifestos de orientação política ou religiosa dos romancistas. Tudo que deve persistir deles, em minha opinião, é somente sua obra de ficção. Viverá só em seus personagens. Como disse em um artigo que escrevi há muitos anos, deixemos apodrecer em paz os corpos de nossos autores." p. 112

Inquietação 

"... esse é o meu modo de ver, e não vejo mal algum em contar-lhe que, toda a minha vida, senti ao meu lado uma presença que não sabia ver nem ouvir, mas que me trazia em perpétua angústia na mais inquieta insatisfação de mim mesmo. Cada ano, cada mês, cada dia, cada hora que se passava, representava um combate minucioso de minutos que se travava no fundo de minha alma, sem que eu soubesse dizer como se chamavam as forças, em luta. Imaginava que era a lealdade, o amor à verdade, à justiça, à solidariedade humana, que se revoltavam dentro de mim, e que o primeiro vencido era eu mesmo, mas depois de muitos anos, de tão cansado, de tão vencido, comecei a compreender, e já não sou tão absurdamente infeliz como o era em mocinho, por exemplo." p. 112

A solução espiritual

" - Chegamos a uma época - disse Cornélio Penna, olhando para a janela, para lá fora - em que todos os homens devem comparecer ´voluntariamente´ perante Deus. Desse contacto sairá a salvação do mundo, porque estou convencido de que as soluções individuais é que determinarão o aparecimento das soluções gerais. Não é a humanidade que está erra, é o homem.." p. 112

O segundo romance

"- Um escritor muito lido - continuou Cornélio Penna - quando fui a Itabira em 1939, perguntou-me se ia colher material, se era o mesmo filão que ia explorar... Ri-me muito dessa idéia, e fui a Minas com esse espinho cravado em meu espírito, ainda mais que um jornal de Belo Horizonte disse que eu ia à procura de documentos humanos. Fiz um grande esforço para libertar-me do ridículo, pude viver lá momentos intensos e senti de novo toda a magia daquela gente, que representa para mim a alma livre do Brasil, poderosa e escondida na montanha. Não trouxe notas em meus cadernos de viagem, mas trouxe a vibração, o nexo espesso, surdo, das horas que vivera, e que faziam com que sentisse necessidade de escrever. E daí a publicação de Dois Romances de Nico Horta."p. 113

O material para A Menina Morta

"- Vou contar-lhe uma coisa curiosa. Curiosa para mim, bem entendido, retificou logo o entrevistado.
    E vi que estavamos parados diante de um retrato que representava uma menina, de vestido de brocado branco, estendida em seu bercinho, muito branca com uma coroa de rosas também brancas cingida na cabeça. Era uma sua tia, falecida em 1852, que tinha sido retratada, já morta, na Fazenda do Cortiço, em Porto Novo.
     - Escrevi um capítulo para o Repouso, antecipadamente, e tinha perto de mim este retrato. Quando reuni depois todos os capítulos, ele se destacou dos outros, inteiramente diferente, com outro ambiente, com outra alma. Era a fazenda de café que se fazia ouvir, com sua voz murmurejante, onde o pranto dos escravos se mistura com a alegria da riqueza dominadora em marcha. E tive que excluí-lo, e guardá-lo, mas não me foi possível conter tudo que aflorou em minha imaginação. Os velhos momentos vividos em Pindamonhangaba, o sangue materno, as recordações, os sentimentos que me tinha embalado, sobrepujados mas não vencidos pela força sobre-humana de Itabira, vieram à tona, e vou escrever outro livro, que se chamará simplesmente A Menina Morta." p.113-114

Recusa ao ambiente literário 

"- Porque não sou literato - responde-nos, rindo, Cornélio Penna - Não se pode imaginar o verdadeiro horror que tenho de viver artificialmente, de criar sem sentir um personagem, e depois ficar prisioneiro dele, e ter de tomar atitudes literárias, de viver literariamente. Não me cabe esse papel e não sei representá-lo, e fico humilhado quando me prendo a dizer coisas artísticas... Vivo apenas a minha vida, e acho tão difícil, tão complicado vivê-la, já me sinto tão cansado, só com isso, que o isolamento para mim é um refúgio e uma necessidade." p. 114

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

No Brasil não há mudança, apenas atualização do que era ruim para algo pior.

        Há um conto de Machado de Assis, "O velho Senado", que não é bem um conto, onde ele apresenta um perfil das ilustres figuras que discursavam naquela casa. No seu texto Machado fala das grandezas, e sutilmente das misérias dos nossos senadores que ocupavam a casa: os Nabucos, os Bocaiuvas, os Otoni, os Paranhos, os Sousa Franco, etc. Alguns que adoravam recitar trechos literários, outros que acompanhavam os discursos alheios com um dicionário à mão. Nos informamos que os roubos de células eleitorais não foram invenção da República, já ocorriam nas eleições durante a Monarquia; assim como concluímos que a falta de coerência e programa é característica antiga dos nossos partidos, aliás o único programa admitido por eles é dar golpes e se manterem no poder, interpretando a Constituição conforme suas vontades. Talvez eles tivessem mais estilo.
"...os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas imediatas da própria queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a restauração da carta constitucional..." Machado de Assis, "O velho Senado", (o conto consta na coletânea, "Páginas recolhidas")

Belo documentário sobre a obra e vida de Lêdo Ivo


"O meu bárbaro pensamento é este: um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito bem a humanidade. E ficarei nisto, enquanto não me provarem que os arranha-céus têm alma." Graciliano Ramos, "Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos.."

Os conservadores de outra época tinham estilo


      Para alguns tudo é linguagem. Concordando com eles temos que admitir que os novos conservadores brasileiros no meio intelectual são paupérrimos em termos de linguagem, o seu principal representante não consegue formular uma frase sem o termo "piroca". O Ministro da Educação é aconselhado por um ex-ator pornô, cujo exercício linguístico não ultrapassa uma sentença com três palavras. Agora temos um deputado preocupado com a masturbação alheia.
          A idealização do passado é um dos pecados mortais para um historiador, mas de uma coisa eu tenho certeza os conservadores brasileiros já foram melhores, até na tematização de questões morais que envolviam o sexo eles promoviam um verdadeiro banquete estético-literário.

           Como exemplo segue um trecho do romance, "Sob o malicioso olhar dos trópicos (1929)", de João Barretto Filho:

"- O seio de uma mulher que não é sua, dizia aquele amigo, é apenas um motivo de excitação, que você utiliza unicamente nesse fim; na hipótese mais espiritual poderá ser uma visão de pura estética, uma admiração pagã pela forma perfeita, mas é só isso. Não se pode comparar com o profundo respeito pela glândula nutritiva que alimenta o seu filho.
- E quando não existe o filho? tinha perguntado André vivamente.
- O filho já existe desde o primeiro olhar, e ainda para os que esperam até o fim da vida, ele esteve sempre presente" (p.116).

domingo, 1 de janeiro de 2017

Alguns trechos de "A Estrada", Jack London.



"...Oh, vocês que vivem pregando a caridade! Aprendam com os pobres, pois apenas eles são generosos. Não dão sobras porque não as têm. Nunca regateiam o que possuem. Muitas vezes dão o pouco que podem, mesmo estando, eles próprios, muito necessitados. Jogar um osso a um cachorro não é caridade. Caridade é compartilhar o osso com o cão quando você está com tanta fome quanto ele." A estrada, Jack London, pág. 27


"O vagabundo de sucesso deve ser um artista. Precisa criar, de forma espontânea e instantânea (sem recorrer a algum tema tirado da própria imaginação), uma narrativa sobre algo que vê no rosto de quem abre a porta, seja homem, mulher ou criança, simpático ou antipático, generoso ou sovina, bondoso ou perverso, judeu ou pagão, negro ou branco, racista ou fraternal, provinciano ou cosmopolita, ou qualquer outra coisa. Muitas vezes, penso que devo o meu sucesso como escritor a esse treinamento dos meus dias de vagabundo. Para conseguir um prato de comida, me via obrigado a contar histórias que soassem verdadeiras. Na porta dos fundos, por uma necessidade inexorável, se desenvolve um poder de convicção e sinceridade equiparável àquele das maiores autoridades na arte de contar histórias. Também acredito que foi meu aprendizado na indigência que me tornou um realista. O realismo é a única coisa que se pode trocar na porta da cozinha por um prato de comida.
Afinal, a arte não é nada mais que um artifício consumado, e o artifício dá credibilidade a muitas ´histórias´..." Jack London, A Estrada, p.30-31