domingo, 3 de maio de 2020

           Pierre Vidal-Naquet foi um dos principais historiadores franceses que estudaram a Grécia Antiga. Francês de origem judaica, combateu na resistência contra o nazismo e teve os seus país assassinados em um campo de concentração. Na década de 1980 escreveu o livro, "Os Assassinos da Memória - o revisionismo na História". Indico a leitura para aqueles que queiram se informar sobre o que está por trás dos revisionismos, e especialmente, para dirimir parte das dúvidas suscitadas pelas mentiras divulgadas pelo governante brasileiro de plantão.
"A 30 de janeiro de 1939, o Führer proclamara as palavras que se tornaram célebres: ´Se a finança judaica internacional da Europa e de outras partes consegue mais uma vez precipitar os povos numa guerra mundial, o resultado disso não será a bolchevização do mundo e, com ela, a vitória do judaísmo, mas, ao contrário, a aniquilação da raça judia da Europa´." (p. 163)
"Hitler pôde também unificar melhor o país contra um único inimigo, o ´judeo-bolchevismo´. Pastores e bispos - inclusive o conde de Galen - participaram alegremente dessa cruzada, pois nela viam precisamente uma cruzada. Nesse sentido, a suspensão de uma operação permitiu realizar a outra num clima de união sagrada." (p. 165)
Thomas Mann fala aos alemães em setembro de 1941!
"Os nazistas sabem por que permitem às suas vítimas apenas a instrução elementar e por que aproveitam a primeira oportunidade para fechar as universidades em toda parte. Instituições de ensino e de pesquisa fomentam o orgulho do homem e seu senso de liberdade; elas criam homens que poderiam se tornar os líderes da nação contra seus opressores - a política senhorial dos nazistas, uma política da infâmia sem paralelo, não pode tolerá-las. Eis a resposta desses senhores ao pedido de permissão dos tchecos para a reabertura da Universidade de Praga. ´Se nós perdermos a guerra´, disseram, ´vocês reabrirão sua universidade. Se nós vencermos, então vocês não vão precisar de nenhuma universidade.´ Vocês não vão precisar - ou seja, serão para sempre uma horda de escravos embotados, ignorantes, espiritual e moralmente castrados, que sequer ainda terá consciência do seu destino, e sim vegetará em um contentamento miserável..." Thomas Mann. Ouvintes alemães! pp.55-56
Palavras que tocam o nosso íntimo, indico a leitura do livro, Húmus (1917), do escritor português, Raul Brandão, numa bela edição pela Carambaia.
"...Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável. - Pois sim...pois sim... Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas."
"...Moram os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham à pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um ano, até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte.
"Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo, e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existência de rancores e, atrás de ano de chicana, consome outro ano de chicana..."
“Há fatos inquietantes que não permitem que fiquemos acomodados na tranquila certeza de que a violência só existe do outro lado. [Do lado do protesto, das passeatas e das agitações estudantis]. O único modo de vencer a violência é reconhecê-la não quando está a gritar nas ruas, mas quando se oculta por trás da decorosa fachada das instituições que defendemos.” Norberto Bobbio
        No início do ano foi publicada a novela, Lasca, de Vladímír Zazúbrin, sobre a Tcheká, polícia política dos primeiros anos da URSS. Felizmente, nos últimos dez anos são inúmeras as traduções de narrativas sobre o período, destacam-se Chalámov e Vassili Grosmann, o meu preferido. Mas é uma grata surpresa a qualidade narrativa de Zazúbrin, associada a reflexão angustiada sobre a revolução, aqui entendida como uma máquina que se torna ingovernável, com vida própria. O autor escreveu a novela entre 1922 e 1923, e viveu até 1937 quando foi fuzilado em um dos expurgos do período stalinista. Deixo duas passagens, que apesar de extensas, apresentam a combinação de qualidade literária e reflexão sobre a revolução.
"...E os pés de aço do caminhão batiam e atolavam fundo na neve azul, quebravam a espinha das corcovas de neve e, no estalar dos ossos da neve, no retinido do ferro, no ofegar resfolegante do motor, no suor sangrento e vermelho do petróleo e de sangue, o caminhão saía pelo portão. Cinza na névoa cinzenta, ia para o cemitério, fazendo tremer ruas, casas, levantando das camas os habitantes, que sabiam de tudo. Os narizes sonolentos estreitavam-se contra os vidros congelados. E na tremedeira dos joelhos, no tremor das camas, no tinido das louças e janelas, os olhos sonolentos e pustulentos escancaravam-se de medo, as bocas sonolentas e fétidas cochichavam sem forças, com raiva, assustadas:
- A Tcheká...Da Tcheká... A Tchecká está levando sua mercadoria..." p. 32

"...A execução secreta, no porão, sem nenhum efeito estético, sem anúncio da sentença, súbita, tem efeito esmagador sobre os inimigos. Uma máquina imensa, impiedosa, onisciente, inesperadamente agarra suas vítimas e as tritura, como em um moedor de carne. Depois da execução, não há data exata da morte, últimas palavras, cadáver, não há cadáver, não há nem tumba. Há o vazio. O inimigo foi aniquilado completamente."" p.91-92
LASCA. Vladímir Zazúbrin. Trad. Irineu Franco Perpétuo. Carambaia.
"... O túnel a desconcertava. Quantas mão haviam sido necessárias para construir aquele lugar? Ela pensou na colheita do algodão, como percorria os sulcos na colheita, os corpos africanos trabalhando como um só, tão rápidos quanto suas forças permitiam. Os vastos campos explodiam em centenas de milhares de bolas brancas, pendendo como estrelas no céu nas noites mais claras. Quando os escravos terminavam, tinham tirado a cor do campo. Era uma operação magnífica, da semente aos fardos, mas nenhum deles conseguia ter orgulho do seu trabalho. Fora roubado deles. Sangrado deles..." Caminhos da Liberdade. Colson Whitehead.

EXPERTS EM SOBREVIVÊNCIA E O DESERTO MENTAL EM QUE VIVEMOS


       Quantos de nós já ouviram a frase,"que se danem, o que importa o sofrimento dos outros". Assim, o que importa é como me viro com os problemas que tenho. O outro destruído tornou-se o restolho desimportante daqueles poucos que tem sucesso. O último ano confirmou este tipo de discurso entre os brasileiros: do que vale o SUS, a Educação Pública, a Previdência, o trabalho com garantias sociais, etc... Este pensamento "bárbaro" esta historicamente atualizado, e a cada atualização, os efeitos são piores, o sinal de alerta foi dado desde o início do século XX, e constantemente acionado. Eis aqui um diagnóstico do início da primeira década do século XXI, que se confirmou com o passar dos anos no Brasil.
"...A anulação mental induzida pela privatização do trabalho atroz, como alguns autores franceses chamam a coisa, vem a ser o reverso de uma tolerância crescente com o intolerável - no caso, a injustiça abissal na sociedade polarizada de hoje. Algo como uma reação defensiva igualmente cruel ante o sofrimento que se é obrigado a infligir a si mesmo e aos outros, os que se vêem passar nas levas sucessivas de precarizados e enxotados, pelo Sistema, é claro, como nos falsos juízos de atribuição que acompanham este encasulamento no medo. É neste momento que se dá a esterilização da faculdade de pensar e prospera o cálculo dos experts em sobrevivência, deserto mental onde cresce apenas a crueldade social que caracteriza todo eclipse da reflexão..." Zero à esquerda. Paulo Eduardo Arantes. ("Apagão", ensaio de 2001).

Folheando o último volume das obras completas de Adorno que trata dos escritos musicais (edição espanhola), encontrei num artigo escrito em fevereiro de 1934, sobre os concertos executados em Frankfurt, uma passagem que revelava a sua preocupação em relação a política do Reich para as emissoras de rádio. Interessante observar que mesmo preocupado, Adorno ainda acreditava na promessa de que as rádios da região de Frankfurt voltariam a ter autonomia na difusão de seus conteúdos musicais.

O Reich havia estabelecido uma política de centralização da programação de concertos a serem vinculados pelas rádios alemãs. As rádios de Frankfurt, assim como algumas orquestras da região tinham uma política progressista quanto aos conteúdos e concertos, a música de vanguarda era prioridade: KRENEK, SCHOENBERG, STRAVINSKI, WEBERN, BERG, WEILL, HONEGGER, etc. Logo se percebeu que a promessa de autonomia futura não se realizou, e os concertos de música de vanguarda foram abolidos. O último artigo escrito sobre os concertos executados em Frankfurt foi publicado por Adorno em março de 1934. Em tempos onde a barbárie começa a dar sinais, todo pessimismo é pouco em relação à análise dos sintomas. Estamos falando nada mais nada menos de Adorno. Para quem quiser conferir o artigo, ele está na obra completa, n.19, escritos musicales VI, págs. 238-241.

sábado, 2 de maio de 2020

Toda metáfora é valida, ainda mais se tirada de Leonard Cohen


Todo mundo sabe
Todo mundo sabe que os dados estão viciados. Todo mundo joga com os dedos cruzados. Todo mundo sabe que os mocinhos se deram mal. Todo mundo sabe que a luta foi vendida: os pobres continuam pobres, os ricos ficam mais ricos ainda. É assim na realidade. Todo mundo sabe.
Todo mundo sabe que o bote está fazendo água. Todo mundo sabe que o capitão tem mentido. Todo mundo sente essa sensação angustiada como se seu pai ou seu cão tivesse morrido. Todo mundo fala com seus botões...
Everybody Knows, Leonard Cohen ( a mil beijos de profundidade. Ed. 7 Letras Trad. Fernando Koproski)
        Todas e todos são importantes! O exemplo a seguir é só mais um entre tantos de escritoras, daqueles que guardam a memória e o afeto em nossas famílias. Aqueles que mesmo depois de terem a tradição cristalizada em suas consciências conseguem romper barreiras e rever os seus valores.
           Margaret Atwood tem 80 anos, boa parte de sua produção foi escrita após os 60 anos, inclusive os trechos que seguem, os quais foram retirados do belo livro, " A Odisséia de Penélope". No livro, Penélope e as 12 escravas enforcadas por Ulisses narram as suas vidas.

"E o que me restou, quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras mulheres. Por que não podem todas ser tão circunspectas, confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os cantores, os rapsodos. Não sigam o meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês - sim, nos de vocês! Mas, quando tento gritar, pareço uma coruja." Penélope

"Também eramos crianças. Também nascemos dos pais errados. De pais pobres, pais escravos, pais camponeses e pais servos; pais que nos venderam, pais de quem nos roubaram. Nossos pais não eram deuses, não eram semideuses, não eram ninfas nem nereidas. Fomos servir no palácio, desde pequenas. Quando chorávamos, ninguém enxugava nossas lágrimas. Se dormíssemos, nos acordavam a pontapés. Diziam que não tínhamos pai nem mãe. Diziam que éramos vadias. Diziam que éramos sujas. Nós éramos sujas. A sujeira era nossa preocupação, nossa responsabilidade, nossa especialidade, nossa culpa. Éramos as moças sujas. Se nossos donos, seus filhos, um nobre visitante ou os filhos dele quisessem deitar conosco, não poderíamos recusar. Não adiantava chorar, não adiantava dizer que doía..." As doze escravas.
      Não consigo ler sem fazer associações e ilações. Quando os carrascos abrem os braços e as vítimas se sentem acolhidas.

"Depois que pôs o telefone no gancho, meu pai não tentou conter sua indignação, e começou a esbravejar como se fosse o tio Monty.´Na Alemanha, eles pelo menos têm a decência de proibir os judeus de entrar no Partido Nazista. Com isso, e mais as braçadeiras com suásticas, e os campos de concentração, pelo menos fica claro que os porcos judeus são excluídos. Mas aqui os nazistas fazem de conta que querem que os judeus participem...´" 

"...Não era nem preciso dizer que o sr. Mawhinney era cristão, pertencia à maioria esmagadora que havia feito a Revolução Americana, fundado a nação, conquistado a natureza, subjugado os índios, escravizado os negros, emancipado os negros e segregado os negros, um dos milhões de cristão bons, honestos e trabalhadores que haviam desbravado a fronteira, lavrado a terra, construído as cidades, governado os estados, ocupado o Congresso e a Casa Branca, acumulado riquezas, se apropriado da terra, das usinas de aço, dos times de beisebol, das estradas de ferro e dos bancos, até mesmo da língua inglesa, um daqueles protestantes nórdicos e anglo-saxões acima de qualquer suspeita que desde sempre mandavam e para sempre mandariam no país - generais, dignitários, magnatas, os homens que faziam as leis, davam as ordens e viravam a mesa quando bem entendiam - enquanto meu pai, claro, era apenas um judeu."

Complô Contra a América,Philip Roth.

"Santuário" de William Faulkner


          Cristãos protestantes !!


"- Os alambiques. Depois que Goodwin se entregou, deram uma batida em tudo, até encontrar o alambique. Sabiam em que negocio estava ele metido, mas esperaram até vê-lo por terra. Caíram-lhe, então em cima. Os bons fregueses, que estavam habituados a comprar dele bom uísque e a beber o que ele lhes oferecia de graça, fazendo talvez a corte, pelas costas, à sua mulher. Você precisava ouvi-los, na cidade. Hoje de manhã, o ministro batista tomou-o como assunto. Não somente  como assassino, mas como adúltero; profanador da livre atmosfera democrático-protestante de Yoknapatawpha. Pelo que deduzi, acha que Goodwin e a mulher deviam ser queimados vivos, como exemplo para aquela criança; e a criança devia ser educada e aprender a língua inglesa unicamente para ficar sabendo que foi gerada em pecado, por duas pessoas que pagaram, na fogueira, pelo crime de a terem gerado.  Deus de piedade, como é que um homem, um homem civilizado, pode seriamente...
     - São apenas batistas - disse Miss Jenny - E quanto ao dinheiro?"

                                                                                          Santuário, p. 109
W. Faulkner