terça-feira, 8 de junho de 2010

Quando os santos pecam (II)

Continuação
“´Like a Rolling Stone´ nunca mais foi a mesma depois da Inglaterra; tampouco Bob Dylan e tampouco seu público. (...)” Greil Marcus
1965. Ano de vida e morte. A sociedade estadunidense passava por um período de contestação da supremacia branca, os direitos civis estavam em discussão, principalmente com Malcom X e Martin Luther King. Neste mesmo ano Malcom X é assassinado. No plano externo, os Estados Unidos enviavam para o Vietnã as primeiras tropas, era o início do fim. Mas 65 não era apenas um ano de morte, era vida, o triunfo do rock`n`roll. Os Beatles lançaram: HELP! Os Rolling Stones lançaram: OUT OF OUR HEADS. O que estes discos tinham de espetacular? Para começar Help!, Yesterday e (I can`t get no) satisfaction. E Dylan? No que Like a Rolling Stone foi inovadora e demiurgo na música pop de então e na vida de Dylan? Marcus destrincha a canção, não é uma poética engajada pura e simplista. A linguagem é desesperançada, a época não permite mais uma linguagem direta, mas apenas alusiva. Os valores culturais e sociais da época estavam em crise, não havia mais um porto seguro. O opróbrio do santo começa no domínio do conteúdo, ou seja, não vendia mais certezas, somente dúvidas. Este já era um pecado mortal, mas o pior estava na forma. Dylan fez o pacto com o diabo, a guitarra elétrica, o rock`n`roll. A heresia tinha forma e conteúdo, rock e incerteza. A Igreja folk não perdoaria Dylan, persegui-lo-iam não somente nos Estados Unidos como também na Inglaterra. O santo tornou-se herege. Já no Newport Folk Festival (1965), Dylan sofreu as conseqüências dos laivos de fé, encurtou o show e tocou para si. Não aceitavam o fato de ele apresentar-se com uma banda de rock (inicialmente HAWKS e depois a maravilhosa THE BAND). O disco todo, Highway 61 Revisited, era uma paulada, no mesmo nível das melhores bandas de rock da época. Dylan ainda tentou fazer shows em duas partes: uma sem guitarras (para os religiosos) e outra com a banda. Porém, a heresia era imperdoável, o mesmo foi chamado de Judas.  Na Inglaterra, Dylan ouviu milhares de vezes o termo: Judas. Para quem quer conferir, ouça os discos Bootleg series vol. 6 (Bob Dylan Live 1966) e Bootleg series vol. 7 (No direction Home). O documentário, No Direction Home, apresenta imagens da turnê de Dylan na Inglaterra. O preço foi pago. Um ano depois, surgiria Blonde on Blonde, outro disco espetacular do nosso herege. Não havia mais volta. O livro de Greil Marcus faz uma belíssima apresentação desta mudança na obra de Dylan e do mundo pop. A revolução da música estava não só na forma (o rock), mas no conteúdo, na afirmação de uma realidade cultural e social caótica, onde o chão cedia e não havia corrimão para segurar-se.

Quando os santos pecam (I)

As lições estéticas que uma pessoa pode ter devem ser dadas por ela mesma. Não há nada que corrompa mais o gosto, do que a defesa política de uma obra artística. Nada mais assustador, do que a dependência do santo e dos rituais sagrados.

A crucificação é uma prática recorrente nas artes em geral, e neste texto, especificamente discutirei um caso que envolve a música popular: Bob Dylan. Recentemente foi publicado no Brasil o livro, Like a Rolling Stone, de Greil Marcus (Companhia das Letras, 2010). Marcus foi editor e escreveu sobre rock por vários anos para a Revista Rolling Stone. Uma coletânea parcial dos seus ensaios foi editada pela Editora Conrad, sob o título, A Última Transmissão (1993/2006). Os ensaios de momento, ou seja, no calor do movimento punk e pós-punk nos Estados Unidos e Inglaterra, destacavam bandas como: Gang of Four, Raincoats, P.I.L., The Clash entre outras. Interessantes nesta coletânea são os ensaios que mostram a efervescência de um movimento punk no meio universitário, muito preocupado com a estética musical.

Like a Rolling Stone é um livro sobre a canção homônima de Dylan que apareceu no disco de 1965, Highway 61 Revisited, marco na sua carreira, na música folk, no rock e na cultura underground. O livro traça toda a construção, produção e gravação da música, assim como a sua repercussão no mundo cultural anglo-saxão (talvez, no mundo). Não se trata de uma história musical, pelo contrário, é um ensaio de imaginação poética de quem vivenciou os acontecimentos e com algumas pitadas de história.

Dylan era o símbolo do purismo engajado na música folk, letras poéticas, mas sempre com um objetivo certeiro, a vida do homem comum do meio-leste e as chagas sociais da sociedade estadunidense: o racismo e as humilhações sofridas por uma população não incorporada à sociedade civil. Neste contexto histórico-social, Dylan associava forma e conteúdo, formato folk e engajamento social, e um toque de intelectualismo. Não é preciso mencionar que Dylan sempre destacou a importância de Woody Guthrie (cantor folk dos excluídos) como um de seus mentores “espirituais”, ele manteve laços muito regulares com Pete Seeger, cantor e estudioso do folclore estadunidense. Seeger pertencia a uma família de estudiosos eruditos do folclore, da qual faziam parte os compositores Charles Seeger e Ruth Crawford Seeger, uma das precursoras da música atonal nos Estados Unidos.

Muito cedo, Dylan se tornou o guardião das tradições da música folk, assim como aquele que representava também uma vertente ilustrada da mesma. Esta combinação lhe custaria à crucificação em 1965. (...)