segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Vergílio Ferreira sobre alguns escritores brasileiros

         No livro Conta-corrente, volume 4, encontramos algumas manifestações de Vergílio Ferreira sobre alguns escritores brasileiros de sua preferência. Por se tratar de um diário, são relatos que demonstram apenas uma questão de gosto, como ele gosta de frisar. No dia 14 de março de 1982, Ferreira fala de Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo e Clarice Lispector. 

"E hoje a seguir ao almoço fui encontrar-me com a Lygia Fagundes Telles, conhecida e excelente escritora brasileira que aí veio ao Congresso dos Escritores e lançou um livro seu. Foi hora e meia de boa cavaqueira. Bela e ágil de espírito  como sempre, Lygia tem o dom difícil da simpatia não estandardizada. De tudo se falou  um pouco. Mas a certa altura eu disse-lhe o que de outras vezes tenho dito e é que há os autores que admiro, os que amo e os mais raros que simultaneamente admiro e amo.

- Pelo que se refere ao Brasil, um autor que admiro mas não amo, é por exemplo Guimarães Rosa, cuja linguagem é uma barreira que não consigo ultrapassar. Um escritor que amo com funda simpatia, mas não admiro muito, muito, é por exemplo o Erico Veríssimo que pude conhecer pessoalmente e sempre me encantou como o nosso Júlio Dinis. E escritores que amo e admiro são por exemplo a Clarisse Lispector e você. 

Ficou encantada. Além de mais, decerto, porque a Clarisse é reconhecidamente uma escritora de excepção." (p. 40-43) (preservei a grafia original do livro, uma edição portuguesa)

              A opinião de Ferreira sobre Guimarães Rosa pode chocar alguns, mas no mesmo diário, alguns dias depois o autor português volta a reler, Grande Sertão Veredas, e faz questão de reconhecer a importância do autor mineiro. 



Rua do Odéon



              Dois livros muito importantes sobre a vida literária parisiense na primeira metade do século XX são: Rua do Odéon e Shakespeare and Company. Esse último, de Sylvia Beach, publicado no Brasil pela Casa da Palavra em 2004,  já esgotado. E agora, em 2017, Rua do Odéon de Adrienne Monnier foi publicado pela Autêntica. Em ambos os livros lemos um relato da experiência das autoras enquanto editoras, donas de livrarias e militantes no mundo literário.
               Rua do Odéon é um belo relato do amor pelos livros, muitas vezes regado a muito lirismo e um profundo comprometimento com o leitor, com a divulgação e distribuição dos livros. Aqui deixo alguns trechos do capítulo: Elogio do livro pobre.

"Vamos tentar definir o ´livro pobre´. Trata-se, em suma, do livro barato, o mais barato, e sobretudo o mais desnudado de pretensões em sua forma. Não incluiremos nessa categoria de ´pobres´ aqueles que, apesar de seu preço módico, ganham formatos, ilustrações e mesmo coloridos afastados de toda modéstia. Não, o livro pobre é um livro de formato comum, preferencialmente menor que o comum, e cujos detalhes, todos, manifestam economia. O papel não é belo, é verdade, mas não pretende ser nem espesso, nem lustroso: é papel. A impressão  é apertada, corpo 9 no máximo, as margens são pequenas: é um impresso. A capa não se arrisca a uma nudez orgulhosa; prefere um fio simples ou duplo, com cantos suavizados por um arabesco ou algum pequeno jogo de linhas... (p.39)

Guardo uma lembrança muito terna da Bibliothèque Nationale, porque foi ela que me deu, quando eu era criança, os primeiros elementos de minha cultura literária. Minha mãe comprava nos cais tudo o que encontrava dela  e deixava que nós, minha irmã e eu, fizéssemos todo o uso. Para ela e para nós, eram  menos livros do que pequenos veículos imateriais que nos transportavam ao reino do espírito. Nunca sua  aquisição pesou em nossa bolsa, eram dados, como a água e o sol. Os centavos que nos custavam não eram verdadeiramente  uma despesa, mas um óbolo vertido alegremente nas portas do templo. (p. 43)

Certamente eram pobre e feitos para os pobres, e todavia eu lhes devo a mais verdadeira e mais duradoura das riquezas. Foram eles que me fizeram conhecer Ulisses, Dom Quixote, Panurge, Gulliver, Robinson Crusoé, Fausto, Hamlet e o Rousseau das Confissões. Foi por meio deles que me aproximei de Dante, Shakespeare e Milton. Epiteto chegou a mim sob sua capa, e essa capa era-lhe perfeitamente adequada. (p. 43)

... A ideia de valor material não limitava o movimento do espírito. Lembro-me de um Dom Quixote de que havíamos encontrado os quatro volumes com a lombada nua, sem capa, amarrados por um grosso barbante que marcava duramente as páginas. Esse triste estado,  longe de nos afligir, havia nos alegrado ainda mais, na medida em que era a causa de um excessivo baixo preço. E nunca, em nenhuma edição, conheci melhor o cavaleiro da triste figura. (p.43-44)

Sim, pensando bem, parece-me certo que os grandes livros nunca estão tão bem instalados como quando estão nos livros pobres, na verdade só são mesmo grandes assim. São os livros pobres que lhes asseguram uma circulação obscura, vital, como o curso do sangue; são eles que, por sua humildade, lhes mantêm a glória; são eles que lhes dão a liberdade de que têm necessidade para seguir seu destino e para ultrapassá-lo; são eles que fazem o melhor para torná-los imortais." (p.44)


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O verdadeiro professor

         No livro, Antes do Fim, Ernesto Sabato faz uma curta autobiografia memorialística onde relembra experiências marcantes em sua vida.  Entre elas há um belo relato sobre sua experiência com Pedro Henríquez Ureña, intelectual latino-americano com obra ensaística reconhecida internacionalmente.  É tocante o relato da fala de Pedro Henríquez Ureña, sua humildade e censo de dever, algo bastante diferente do delírio grandiloquente da aristocracia de cátedra que há no Brasil, nas universidades públicas.

"Na época em que eu cursava o primeiro ano, soubemos que teríamos como professor um ´mexicano´, que a rigor era portoriquenho. E sinto um nó na garganta ao recordar a manhã em que vi entrar na sala de aula esse homem silencioso, aristocrata em cada um de seus gestos, que com palavra comedida impunha uma secreta autoridade: Pedro Henríquez Ureña. Um ser superior, tratado com mesquinharia e reticência por seus colegas, com o típico ressentimento dos medíocres, a ponto de nunca ter chegado a professor titular de nenhuma das faculdades de letras.

        A ele  devo minha aproximação aos grandes autores, e sua sábia advertência que ainda recordo: ´Onde termina a gramática começa a grande arte´. Porque ele não era partidário de uma concepção purista da linguagem, ao contrário, estava perto de Vossler e Humboldt, que consideravam o idioma uma força viva em permanente transformação...
        Mais tarde, voltando a viajar de trem, sonhei com encontrar esse professor do meu secundário, sentado em algum vagão, com a valise cheia de lições corrigidas, como daquela vez - há tanto tempo! - em que viajamos juntos e eu lhe perguntei, condoído de ver como ele dedicava os anos a tarefas menores, ´Por que, don Pedro, o senhor perde tempo com essas coisas?´. E ele, com seu amável sorriso, respondeu: ´Porque entre eles pode haver um futuro escritor´.
        Quanto devo a Henríquez Ureña!..." Ernesto Sabato, Antes do Fim. páginas 37-38


       "Nos penhascos de Mármore", Ernst Jünger apresenta-nos um espetacular uso da linguagem ao retratar alegoricamente o nazismo, sem deixar de mostrar os seus aspectos mais sombrios. Deveras, justificam-se os elogios de Antônio Cândido a este livro.
"... Depois que ele entrou no celeiro, passamos a ouvir o ruído de pancadas e de raspagem na mesa de esfola, além da cançãozinha que ele continuava a assoviar num tom de jovialidade espectral. Ouvimos então, como se estivesse a acompanhá-lo, o vento perpassar o pinheiral, de modo que os alvos crânios que pendiam das árvores chocalhavam em coro. Ao sopro do vento associavam-se ainda a batida dos tacões do homenzinho e o ruído de atrito das mãos secas na parede do celeiro. O barulho das pancadas e dos crânios que se chocavam lembrava uma encenação de marionetes no reino da morte. Ao mesmo tempo um persistente, pesado e doce cheiro de putrescência pairava no ar e nos fazia estremecer até a medula. Sentíamos como em nosso íntimo a melodia da vida se propagava por sua corda mais profunda e sombria. Mais tarde, não saberíamos dizer por quanto tempo havíamos observado essa cena - talvez não tenha sido mais que um instante. Então, como que despertos, tomamo-nos pelas mãos e corremos para o seio da mata do Corno do Carrasco, enquanto o grito do cuco nos acompanhava desdenhoso. Acabáramos de conhecer a sinistra cozinha da qual partia a névoa que vagava até Marina - uma vez que não arredávamos dali, o velho mostrou-a para nós de um modo relativamente preciso. Tratava-se dos porões sobre os quais se erguem os castelos da tirania e a partir dos quais se vêem evolar as fragrâncias de suas festas: antros fétidos da espécie mais sinistra. Dentro deles, por toda a eternidade, uma canalha abjeta se regozija de modo pavoroso na profanação da dignidade e da liberdade humana. Calam-se então as musas, e a verdade começa a vacilar como a chama exposta aos ventos da tempestade inclemente..."  Nos penhascos de Mármore, páginas 113-114
           "Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível..." Vergílio Ferreira, Aparição.
         "A história é mais complicada, mais complexa, mais ambígua e contraditória do que as filosofias da história tentam nos fazer crer. Para o historiador, que baixa os olhos em direção às asperezas da terra em vez de elevá-los em direção a um céu sem nuvens, a história não tem um fim, um único fim, nem mesmo, em consequência um final. O filósofo da história pode se permitir atuar como profeta, o historiador deve limitar-se a fazer prudentes previsões com base em proposições hipotéticas ´se-então´." Norberto Bobbio, Direita e esquerda.

Campos de Castela de Antonio Machado

          Recomendo a compra do livro, Campos de Castela, de Antonio Machado. Trabalho editorial fundamental da Editora Caminhos.

"É melhor dentre os bons
que sabe que nesta vida
tudo é questão de medida:
subir, baixar semitons..."
                                        Antonio Machado

"Nem tem sabor o fruto
colhido ainda verde...
Nem por louvar-te um burro
tornou-se inteligente."
                                       Antonio Machado
(Provérbios e cantares, retirado do livro, "Campos de Castela", publicado pela Editora Caminhos de Goiânia)


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Coleção Fernando Pessoa pela Editora Tinta da China


             Aos apreciadores da obra de Fernando Pessoa, eis uma coleção primorosa.





"...Que este mundo que nos coube seja o das florestas sombrias, da aridez desabitada - é isso uma certeza que nos não destrói, porque a vida é evidente por si; e ainda que a alegria nos não visite, essa alegria que eu imagino para ti, ficou-nos ao menos a plenitude de ver, de saber iluminadamente, de assumir. A redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites..." Vergílio Ferreira, Carta ao futuro

Sabato encontra Cioran

            Encontro de Ernesto Sabato com Emil Cioran em Paris, 1989. Ambos com 78 anos na época.
"Conversamos fraternalmente durante mais de quatro horas... Descobri em Cioran a coerência de um homem autêntico, e partilhamos pensamentos de notável semelhança. Como a necessidade de desmistificar o racionalismo que só nos trouxe a miséria e os totalitarismos. E também a imbecilidade dos que crêem no progresso e no avanço da civilização. ´Tudo pode ser sufocado no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, assim como ao desaparecimento da religião sobre a terra.´Palavras de um filósofo cuja lucidez era fruto de sua perplexidade e seu tormento.
Tenho a convicção de que sua dor metafísica teria se atenuado se ele tivesse podido escrever ficção, dado seu caráter catártico, e porque os graves problemas da condição humana não são aptos para a coerência, mas unicamente acessíveis a essa expressão mitopoética, contraditória e paradoxal, como nossa existência.
´Na tristeza tudo vira alma´, diz ele em um de seus ensaios que tanto ajudaram a desmascarar a frivolidade e os sorrisos hipócritas dos tempos que correm." Ernesto Sabato, Antes do fim. pág. 118