domingo, 6 de novembro de 2016

Um recital de latidos em Almas Mortas

            Nesta bela passagem, Gógol narra a chegada de Tchítchicov a sede de uma pequena propriedade onde é recebido por um coral de cachorros.

            "A porteira se abriu. Uma luz brilhou em outra janela. A sege, entrando no pátio, parou diante de uma casa pequena, que mal se podia divisar naquela escuridão. Apenas metade da casinha estava iluminada pela luz que saía das janelas; via-se ainda uma poça de água na frente da casa, na qual a luz se refletia diretamente. A chuva tamborilava sonoramente no telhado de madeira e escorria em borbotões murmurantes para dentro de um barril ali colocado para recolhê-la. Enquanto isso, a cachorrada se esmerava, latindo em todos os diapasões imagináveis: um, atirando para trás a cabeça, soltava um latido tão prolongado e caprichado, como se recebesse um alto ordenado para fazê-lo; outro ladrava aos arrancos, como um sacristão; entre os dois soava, como um sininho postal, um soprano infatigável, que devia pertencer a um cãozinho novo, e tudo isso, finalmente, era arrematado por um ladrar baixo-profundo, quiçá  de um velhote de robusta natureza canina, porque rouquejava, como costuma rouquejar o contrabaixo coral, quando o recital está em pleno andamento: os tenores se esticam na ponta dos pés, no afã de alcançar as notas altas, e todos os mais se esforçam para cima, revirando a cabeça, e só ele, afundando o queixo mal-escanhoado no colarinho, encolhendo-se e abaixando-se quase até o chão, dali solta a sua nota, que faz tremer e vibrar as vidraças. Já por esse recital de latidos,constituído de tais vocalistas, poder-se-ia supor que a aldeia não era das piores..." Almas Mortas, Gógol. pág. 76