domingo, 23 de abril de 2017

            Melhor faz aquele que carrega um cadáver insepulto dos seus pecados. Pois o seu cheiro fétido é o aviso adequado contra a tentação do discurso virtuoso e a promoção de autos-de-fé.


            Postei recentemente o poema, Táctica y Estrategia, de Mario Benedetti. Agora deixo a versão em português que consta no livro, "O amor, as mulheres e a vida (Antologia de poemas de amor)", publicado no Brasil pela editora Verus,2010. A tradução dos poemas é de Julio Luis Gehlen.

Tática e estratégia
Minha tática é
                                olhar-te
aprender como és
querer-te como és

minha tática é
                                falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é 
ficar na tua memória
não sei como          nem sei
com que pretexto
mas ficar em ti

minha tática é
                              ser franco
e saber que és franca
e que não nos vendamos
simulacros
para que entre os dois
não existam véus
                             nem abismos
minha estratégia é
no entanto
mais profunda e mais
                             simples

minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como        nem sei
com que pretexto
por fim                  me necessites.


Mario Benedetti

domingo, 9 de abril de 2017

          Dalton Trevisan é subestimado pela crítica literária, neste domingo, 09 de abril, esse artífice da escrita foi menosprezado quando comparado a Rubem Fonseca. Trevisan seria um provinciano, segundo um crítico da Folha de São Paulo. Trevisan escreve sobre Curitiba no que ela tem de universal, não por acaso hoje fiz a leitura deste texto, e vejo-o como universal, pois tematiza o cotidiano que é comum não só aos paranaenses da capital, mas de todos os brasileiros.


LAMENTAÇÕES DA RUA UBALDINO

...
em vez do culto em surdina
propagas o escândalo sobre os telhados
sons malignos que não se podem aturar
de altíssimos que são
o Senhor dos  Exércitos enviará maldição
aos predadores do sossego
és tu cenobita
atormentador do teu vizinho?
essa igreja central é um estrondo
deixou passar o tempo assinalado
morada de dragões
matracas e baitacas
onde o fiscal?
onde a lei do silêncio?
onde o que conta os decibéis?
o inimigo da Rua Ubaldino
nesse mesmo número 666
uiva baterista clama guitarrista 
rebolai-vos no pó da danação
à tua porta já batem as duas ursas
chamadas por Elias
cala-te aquieta-te irmão cenobita
afasta de nós esse cálice da balbúrdia
e da aflição do espírito
casa de oração convertida em covil
de salteadores da paz
não o pão
mas a pedra dodecafônica
não o peixe
mas a serpente da caixa de ressonância
não o ovo
mas o escorpião do amplificador
amigo a que vieste?
mais fácil passar um camelo
pelo fundo da agulha
do que entrar um guitarrista cenobita
no reino de Deus
dura é essa barulheira
quem a pode suportar?
filhos da Rua Ubaldino chorai
sobre o fim da paz e do sossego
ah! espado do Senhor
até quando descansarás na tua bainha?


Dalton Trevisan


sábado, 1 de abril de 2017

Realização e angústia

              "Ao passo que o homem, ao se levantar sobre as patas traseiras e transformar em machado a primeira pedra lascada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; pois com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos ele viria a erigir essa construção tão poderosa e estranha chamada cultura, iniciando assim seu grande drama: deixará de ser um simples animal, mas nunca chegará a ser o deus que seu espírito sugere. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá  perdido o paraíso terrestre de sua inocência sem ganhar o paraíso de sua redenção." Ernesto Sabato, A resistência. pág. 78