domingo, 6 de novembro de 2016

Um recital de latidos em Almas Mortas

            Nesta bela passagem, Gógol narra a chegada de Tchítchicov a sede de uma pequena propriedade onde é recebido por um coral de cachorros.

            "A porteira se abriu. Uma luz brilhou em outra janela. A sege, entrando no pátio, parou diante de uma casa pequena, que mal se podia divisar naquela escuridão. Apenas metade da casinha estava iluminada pela luz que saía das janelas; via-se ainda uma poça de água na frente da casa, na qual a luz se refletia diretamente. A chuva tamborilava sonoramente no telhado de madeira e escorria em borbotões murmurantes para dentro de um barril ali colocado para recolhê-la. Enquanto isso, a cachorrada se esmerava, latindo em todos os diapasões imagináveis: um, atirando para trás a cabeça, soltava um latido tão prolongado e caprichado, como se recebesse um alto ordenado para fazê-lo; outro ladrava aos arrancos, como um sacristão; entre os dois soava, como um sininho postal, um soprano infatigável, que devia pertencer a um cãozinho novo, e tudo isso, finalmente, era arrematado por um ladrar baixo-profundo, quiçá  de um velhote de robusta natureza canina, porque rouquejava, como costuma rouquejar o contrabaixo coral, quando o recital está em pleno andamento: os tenores se esticam na ponta dos pés, no afã de alcançar as notas altas, e todos os mais se esforçam para cima, revirando a cabeça, e só ele, afundando o queixo mal-escanhoado no colarinho, encolhendo-se e abaixando-se quase até o chão, dali solta a sua nota, que faz tremer e vibrar as vidraças. Já por esse recital de latidos,constituído de tais vocalistas, poder-se-ia supor que a aldeia não era das piores..." Almas Mortas, Gógol. pág. 76

domingo, 30 de outubro de 2016

"E depois a gente rica não gosta de ouvir os pobres se queixando da sua má sorte - dizem que incomodam, que são impertinentes! A pobreza é sempre impertinente mesmo - talvez porque seus gemidos famintos lhes perturbem o sono!" Gente Pobre, Dostoiévski, pág. 138
         Minha homenagem ao "velho Graça", talvez um "russo" em terras tupiniquins...
"Não há opinião pública: há pedaços de opinião, contraditórios. Uns deles estariam do meu lado se eu matasse Julião Tavares, outros estariam contra mim. No júri metade dos juízes de fato lançaria na urna a bola branca, metade lançaria a bola preta. Qualquer ato que eu praticasse agitaria esses retalhos de opinião. Inútil esperar unanimidade. Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos." Angústia, Graciliano Ramos
         Brasil e Rússia, dois irmãos separados por um oceano e milhares de quilômetros de terra. Aqui Gógol teria o mesmo final que teve na Rússia, procuraria uma solução mística, pois querer compreender a realidade brasileira deixa qualquer um perturbado.
          Ou nas palavras de um personagem dostoievskiano ...
"...Entretanto, era como se tudo contribuísse para a impressão má e desagradável, em suma, uma coisa puxa outra; de tudo depreendemos algo que se assemelha à nossa situação, e é sempre assim que acontece..." Makar Alieksiêievitch, Gente Pobre, Dostoiévski.
        Dostoiévski foi preso em 1849, juntamente com todo o círculo de Petrachévski, jovens intelectuais, estudantes e escritores. Na época reuniam-se para discutir os problemas sociais da Rússia, principalmente o fim da servidão. Uma das medidas adotadas pelo ministro da Educação da época foi abolir o ensino de filosofia e metafísica das universidades russas, "... e os cursos de lógica e de psicologia foram entregues a professores de teologia..". Nicolau I era o czar no período. (Dostoiévski, os anos de provação. Joseph Frank, pág. 25.)
       Lá se vão duas décadas da minha relação com a literatura russa, paixão juvenil que nunca acabou, sempre se renova. No início era aquela coisa intimista e pessimista, instilada por Dostoiévski. Os anos passaram, o que era uma relação intimista deixou de sê-lo, pois foram vários anos de leituras historiográficas e sociológicas. Há muito penso nas similitudes entre o nosso modo de ser e o do povo russo, o que sempre é reafirmado após a leitura de uma obra ainda desconhecida. Esses dias li, "Uma história desagradável", de Dostoiévski, conto que tematiza a tentativa malograda de um alto funcionário com boas intenções em misturar-se com o povo.
        No posfácio de Aleksei Riémizov encontrei um trecho que me parece sintetizar uma característica também nossa...

       "No mundo ´falso´ concebido por mim, apenas um tolo pode ´sonhar´, enquanto o ´homem de ação´é sempre um cabeça-dura (limitado); ou então, ser ´honrado´ significa que não se teve ocasião de ser particularmente desonesto com ninguém, e qualquer um pode ser ´maligno´, e apenas o ´idiota´ é sem maldade; o ´homem direito´ é um covarde e um escravo, e o ´bondoso´só o é até que lhe peçam dinheiro."
        Essa nossa capacidade de fazer discursos sobre a virtude, mas não a professarmos, e pior ainda, zombamos daqueles que mesmo parcialmente conseguem fazê-lo.

domingo, 4 de setembro de 2016

Lima Barreto contra a biopolítica e o saber-poder de sua época

               A crônica que segue foi publicada em 07 de maio de 1921, na Revista Careta, número 672, assinada por Jonathan, pseudônimo usado por Lima Barreto. A crônica foi reunida no volume recém pública pela Companhia das Letras, Sátiras e outras subversões. A crônica é encontrada nas páginas 281 a 283.

***

A bordo do Herschel

                 Há dias, a bordo de um paquete inglês Herschel, houve um grande charivari, por causa do desembarque de um passageiro. A coisa vem contada nos jornais e é de um cômico irresistível. Houve um conflito de jurisdição entre os médicos da Saúde Pública e a polícia; e - coisa curiosa! - quem tinha razão era esta última.
               O passageiro era paralítico; e, como a paralisia é moléstia contagiosa, a ditadura médica que, entre nós, se esboça, em Harvard, conforme os trabalhos profundos do cônsul Hélio Lôbo, determinou que o tal homem não desembarcasse.
                Acontece que o pobre homem era casado, no Brasil, e tinha filhos brasileiros - coisa que ele, por seus procuradores, provou plenamente perante o chefe de polícia, a autoridade competente no assunto; mas como os médicos, especialmente os do Brasil, receberam o dom divino de possuírem as leis eternas e imutáveis que regem a vida e a morte, não podendo, por isso, se submeterem a ´borra-botas´ (sic)  que não são médicos, os da Saúde Pública resolveram contrariar a ordem do chefe de polícia, não permitindo o desembarque do pobre homem. Houve chinfrim e bate-boca - coisa assaz edificante para a meditação do fleumático inglês que assistia àquela ´guerra civil´ entre autoridades brasileiras.
          O homem embarcou e desembarcou várias vezes; os médicos e os policiais quase se engalfinharam.    
                  É curioso isso, para revelar até a que excessivo ridículo pode levar a verdade profissional. Se fosse um ilitar que se quisesse sobrepor a uma ordem legal, já estaríamos nós a gritar contra o militarismo, a prepotência dos homens de farda etc, etc.; mas foi um médico e médico oficial, um simples médico da Saúde Pública que se arrogou possuir uma autoridade superior que nenhuma lei lhe dá. Ele partiu certamente do princípio de que, pelo simples fato de ser médico, é ... um sábio.
                 Puro engano! Não basta ser médico, para ser sábio; é preciso mais alguma coisa, e essa mais alguma coisa é muito difícil.
                   Enquanto os nossos ´doutores´ não se convencerem  de que eles são simples profissionais como quaisquer outros, e que a distinção que os cerca só é legítima quando partida do consenso geral, não ficando eles por isso acima das leis comuns, a nossa democracia é uma burla. Não existe quando há uma classe privilegiada, mesmo que essa seja a de ´doutores´. 
                 Se o doutor da Saúde Pública fosse mesmo um sábio e não um estreito medicozinho confinado, não na medicina, que é tão vasta que ninguém nela se pode confinar, mas no diploma e no anel, saberia disso e não desprezaria a autoridade dos ´borra-botas´ que não ´alisaram os bancos de uma Academia´. 
                    Nós, até no próprio Rio de Janeiro, estamos muito eivados dessa ´superstição doutoral´ que nos legou o Império. É preciso combatê-la, mesmo no interesse dos verdadeiros profissionais que para tais ofícios foram por vocação; e que são, entretanto, prejudicados por centenas de outras que a elas açodem, por vera vaidade do realce que o título, chamado científico, dá no nosso meio.  Estes constituem  uma espécie de guarda nacional doutoral...
                  Quando essa superstição desaparecer, o ensino superior subirá de nível e a mentalidade, em geral, dos brasileiros não será só por fim receber, no Aloisio de Castro ou no Herculano de Freitas, a crisma enobrecedora do prenome ´doutor´. O título terá outra significação, muito mais útil e mais digna; e estou bem certo de que não se passarão mais ridículos espetáculos semelhantes a este de bordo ao Herschel, tendo por teatro a carinhosa e tranquila beleza da Guanabara que a antiquada das montanhas que a cercam, quase tão antigas quanto a Terra, ainda mais tranquila a torna, na sua convicção de imortalidade. 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A "república de curitiba" desde sempre preocupada com o marxismo-leninismo que assola as escolas brasileiras.


Garotinho Corrupto
         "Aqui no Brasil pegou a moda de subversão. Tudo que se faz e que desagrade a alguém é considerado subversivo... Depois eles dizem que é marcação da gente, mas a notícia que veio de Curitiba é de lascar. Eles fecharam um jardim de infância, chamado Pequeno Príncipe, e o general-comandante da Região Militar de lá disse que este título era subversivo. O general - o nome dele é Caudal - disse que o colégio deveria se chamar ´Pequeno Lenine´. Já entrou fácil no Festival.
            Acontece que a maior das criancinhas que ali estuda tem cinco anos de idade e a menorzinha ainda está molhando a sala de aula e o resto. É o Festival de Besteira que segue em caudal. O general e os encarregados de um IPM contra o jardim de infância dizem que as professoras estavam ensinando marxismo e leninismo..." Stanislaw Ponte Preta, FEBEAPÁ.
      "Se eu tivesse vontade de encomendar um anel para mim, escolheria a seguinte inscrição: ´Nada passa´. Acredito que nada passa sem deixar marcas e que cada pequeno passo nosso tem um significado para a vida presente e futura". Narrador da novela, "Minha Vida", de Anton Tchekhov.
             Homenagens e premiações sempre provocam reações diversas, recentemente li o livro, "O Amor de Mítia", de Ivan Búnin, que recebeu o prêmio Nobel de literatura, provavelmente por ser um dissidente do regime soviético e ter organizado em Paris revistas que divulgavam a literatura russa. Romance mediano, não merece muita atenção. E em seguida li a novela, "Minha Vida", de Tchekhov que morreu em 1904, três anos após o início da premiação sueca para a categoria literatura, obviamente não se discute o fato de ele não ter ganho o Nobel. O que impressiona é o desnível de qualidade entre os autores; e consequentemente a genialidade de Tchekhov. "Minha Vida" foi escrita em 1896, sendo um dos últimos trabalhos do autor, já renomado teatrólogo e contista; e a qualidade  narrativa no desenrolar desta novela, do otimismo transformador, ao total convencimento de que no final estamos sós; que os fatos sufocam nossos planos e sonhos. Recomendo a leitura!!!

sexta-feira, 18 de março de 2016

O impagável Capistrano de Abreu! !!


"Como sei que ninguém é capaz de salvar ou deitar a perder o Brasil, finjo que o caso não é comigo e vou andando por aí fora de longada. "
"Não se pode imaginar cousa mais desprovida de inteligência e previsão, mas há quase cem anos José Bonifácio escreveu: no Brasil o real vai além do possível. "

"Consolo-me, pensando que tudo iria pior, se tivéssemos o parlamentarismo. Isto não indica preferência pelo presidencialismo. Nenhum método de governo pode servir, tratando-se de povo visceralmente corrupto como o nosso". Carta a João Lúcio de Azevedo
Sobre o futebol
“Nunca assisti a uma partida, não posso fazer ideia de como é, e os termos técnicos soam-me aos ouvidos como a mais arrevesada das gírias; mas enquanto tudo for independente de socorros federais ou municipais, contará com minhas simpatias incondicionais o jogo de football”. Carta de 19-05-1919

Nada como consultar um dos sábios nacionais, Lima Barreto.

Nada como consultar um dos sábios nacionais, cujos textos nunca caducam!!!
Dissidências
(Careta /5-1-1924)
Este caso de candidaturas que quase empolgou a opinião pública, acabou comicamente num desfecho de malandragem que tudo fazia esperar. Quem conhece os personagens que nele andaram metidos, bem sabia que tal coisa havia de acontecer. Não os movia nada de sério, nem qualquer ideal alimentava a campanha deles.
O que eles queriam, ou que eles querem, são os proventos que os altos cargos dão e, sobretudo, as vantagens que eles trazem à margem.
Seja, Bernardes, seja Vertenza, associados a quaisquer deles a ´filadelfos´ de toda a ordem, o certo é que nenhum deles quer o bem público, nem mesmo o dos seus asseclas.
O escopo deles é arranjarem-se e mais as famílias.
A tal história de ´reação republicana´ começou com tal ímpeto que parecia ser mesmo um movimento de opinião dirigida com sinceridade por homens de valor e responsabilidade, contra politiqueiros obscuros, cuja única noção de política fosse aquela que se adquire nas lutas eleitorais da roça, onde predominam o assassinato, a compressão e a fraude.
Entretanto, assim não foi. No momento agudo, quando todos esperavam que tais homens levassem a luta até ao último, todos eles, sob este ou aquele pretexto, fugiram dela, deixando os seus adeptos ´a ver navios´.
Ora, bolas! Chefes que tais não merecem confiança. É consagrado que o comandante do navio, em caso de naufrágio, seja o último a deixar o barco; entretanto os comandantes da barcaça da dissidência não fizerem isso. Foram os primeiros a fugir.
Onde está o combate? Onde está a luta?
Está aí, em que consiste a política no Brasil; Bernardes briga com Vertenza, soltam ambos belas palavras, pelos seus jornais e pelos seus oradores, os bobos tomam partido, levam chanfalhadas da polícia, vão para o xadrez e.. os chefes embarcam para a Europa. Viva a política!
Lima Barreto
Segue um trecho de uma das crônicas de Machado de Assis, um diálogo...
“- Ó palerma, eles conhecem-te; procura-os. Quando o filhinho de algum vier à sala, pega nele, assenta-o na perna; se o menino meter o dedo no nariz, acha-lhe graça. E pergunta ao pai como pai como vai a senhora; afirma que tens estado para lá ir, mas as bronquites são tantas em casa... Elogia-lhe as bambinelas. Não ofereças charuto, que pode parecer corrupção; mas aceita-lhe o que ele te der. Se for quebra-queixo, pergunta-lhe interessado onde é que os compra.
- Já se vê, em cada casa a mesma cantilena. Uma só música, embora com palavras diversas. O eleitor pode ser um ruim poeta...
- Justamente; leva-lhe decorado o último soneto, um primor.
- Compreendi tudo. Definição é que nada, visto que são meus amigos. Compreendi tudo. Posso oferecer a minha gratidão?
- Podes; toda a questão é ir ao encontro do sentimento do eleitor, isto é, que ele te faz um favor votando; não escolhe um representante dos seus interesses. Anda, vai-te embora e volta-me deputado.” Crônica de 13 de agosto de 1889