As sábias palavras de Milton que serão transcritas abaixo, talvez foram proferidas para exortar comportamentos desviantes da norma. Penso que sim, porém diante da realidade que vivemos hoje, observando evangélicos - pentecostais ou neopentecostais - percebemos o quanto às palavras de Milton exortariam a maioria dos religiosos.
Max Weber pode ter constatado o quanto a ética religiosa protestante orientou a vida cotidiana dos fiéis no início da modernidade ocidental. Porém, se analisarmos hoje, o quanto a vida cotidiana dos fiéis é orientada eticamente ficaremos pasmos, aliás, a ética dos fiéis se assemelha a ética dos seus guias espirituais.
John Milton foi um dos principais escritores ingleses do século XVII. Como poeta nos legou o clássico, O Paraíso Perdido. Também foi teólogo e político. O trecho que reproduzido abaixo foi retirado do livro: Areopagítica, Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Editado no Brasil pela Topbooks com tradução bilíngüe de Raul de Sá Barbosa, 1999.
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“(...) Um homem rico, apegado a seus prazeres e a seus lucros, vê a religião como um tráfico tão emaranhado e de contas tão pormenorizadas que, de todos os segredos do negócio, ele não consegue recompor a contento o seu estoque. Que fazer? Agrada-lhe a fama de ser homem piedoso e temente a Deus, agrada-lhe igualar-se, nesse particular, aos seus vizinhos. Em conseqüência, desiste de trabalhar e procura encontrar alguém a quem possa entregar o governo da sua vida religiosa. Um clérigo de fama é o ideal. A essa figura ele adere, entrega-lhe toda a parafernália da sua religião, com as chaves de todas as fechaduras e cadeados. A rigor, ele faz dessa pessoa a sua religião. Entende que a simples associação com ela é prova cabal e suficiente da própria piedade. Assim, esse homem poderá dizer que sua religião já não está no seu íntimo, mas tornou-se como que um bem móvel, dotado da faculdade de ir e vir perto dele, ao sabor das visitas do santo, que lhe freqüenta a casa. Ele o recebe, festeja-o, presenteia-o, hospeda-o. Sua religião volta para casa à noite, reza, ceia lautamente, e é posta para dormir. De manhã, levanta-se, é saudada e prova da malvasia que lhe oferecem, ou toma alguma beberagem aromatizada. Fica melhor alimentado do que aquele cujo apetite se daria por satisfeito se comesse alguns figos verdes entre Betânia e Jerusalém. Sua religião sai às oito horas e deixa seu amável anfitrião na loja, negociando o dia todo sem sua religião.” (páginas 143-145)