segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Rua do Odéon



              Dois livros muito importantes sobre a vida literária parisiense na primeira metade do século XX são: Rua do Odéon e Shakespeare and Company. Esse último, de Sylvia Beach, publicado no Brasil pela Casa da Palavra em 2004,  já esgotado. E agora, em 2017, Rua do Odéon de Adrienne Monnier foi publicado pela Autêntica. Em ambos os livros lemos um relato da experiência das autoras enquanto editoras, donas de livrarias e militantes no mundo literário.
               Rua do Odéon é um belo relato do amor pelos livros, muitas vezes regado a muito lirismo e um profundo comprometimento com o leitor, com a divulgação e distribuição dos livros. Aqui deixo alguns trechos do capítulo: Elogio do livro pobre.

"Vamos tentar definir o ´livro pobre´. Trata-se, em suma, do livro barato, o mais barato, e sobretudo o mais desnudado de pretensões em sua forma. Não incluiremos nessa categoria de ´pobres´ aqueles que, apesar de seu preço módico, ganham formatos, ilustrações e mesmo coloridos afastados de toda modéstia. Não, o livro pobre é um livro de formato comum, preferencialmente menor que o comum, e cujos detalhes, todos, manifestam economia. O papel não é belo, é verdade, mas não pretende ser nem espesso, nem lustroso: é papel. A impressão  é apertada, corpo 9 no máximo, as margens são pequenas: é um impresso. A capa não se arrisca a uma nudez orgulhosa; prefere um fio simples ou duplo, com cantos suavizados por um arabesco ou algum pequeno jogo de linhas... (p.39)

Guardo uma lembrança muito terna da Bibliothèque Nationale, porque foi ela que me deu, quando eu era criança, os primeiros elementos de minha cultura literária. Minha mãe comprava nos cais tudo o que encontrava dela  e deixava que nós, minha irmã e eu, fizéssemos todo o uso. Para ela e para nós, eram  menos livros do que pequenos veículos imateriais que nos transportavam ao reino do espírito. Nunca sua  aquisição pesou em nossa bolsa, eram dados, como a água e o sol. Os centavos que nos custavam não eram verdadeiramente  uma despesa, mas um óbolo vertido alegremente nas portas do templo. (p. 43)

Certamente eram pobre e feitos para os pobres, e todavia eu lhes devo a mais verdadeira e mais duradoura das riquezas. Foram eles que me fizeram conhecer Ulisses, Dom Quixote, Panurge, Gulliver, Robinson Crusoé, Fausto, Hamlet e o Rousseau das Confissões. Foi por meio deles que me aproximei de Dante, Shakespeare e Milton. Epiteto chegou a mim sob sua capa, e essa capa era-lhe perfeitamente adequada. (p. 43)

... A ideia de valor material não limitava o movimento do espírito. Lembro-me de um Dom Quixote de que havíamos encontrado os quatro volumes com a lombada nua, sem capa, amarrados por um grosso barbante que marcava duramente as páginas. Esse triste estado,  longe de nos afligir, havia nos alegrado ainda mais, na medida em que era a causa de um excessivo baixo preço. E nunca, em nenhuma edição, conheci melhor o cavaleiro da triste figura. (p.43-44)

Sim, pensando bem, parece-me certo que os grandes livros nunca estão tão bem instalados como quando estão nos livros pobres, na verdade só são mesmo grandes assim. São os livros pobres que lhes asseguram uma circulação obscura, vital, como o curso do sangue; são eles que, por sua humildade, lhes mantêm a glória; são eles que lhes dão a liberdade de que têm necessidade para seguir seu destino e para ultrapassá-lo; são eles que fazem o melhor para torná-los imortais." (p.44)


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