sexta-feira, 31 de março de 2017

             Mário de Andrade em resenha sobre o livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, fez uma crítica muito interessante e atemporal quanto a certa romantização da miséria humana. Romantização literária que esvazia o sofrimento humano, ao invés de denunciá-lo. A resenha foi escrita em 1930, e depois compilada no livro, Táxi e crônicas no Diário Nacional.

“... O defeito da arte é mesmo transportar os maiores horrores da humanidade e da Terra pra um plano hedonístico, tão contemplativo e necessariamente diletante, que a gente está chorando na leitura e não sofre nada. Chora que é uma gostosura. As dores de fundamento estético, por mais suicídios que tenha causado o Werther, não fazem mal pra ninguém. Pelo contrário: desvirtuam a nossa humanidade, literatizam nossos deveres humanos que em vez de se tornarem ativos e eficientes, se desmancham nas misérias das frases bonitas, na recordação das obras de arte e em piedades oratórias. Estou convencido que o livro de Euclides fez um mal enorme pros brasileiros e dificultou vastamente o problema das secas. Fez da seca uma obra de arte, e nós adquirimos, por causa dele, uma noção tangencial dos nossos deveres pra com o Nordeste, uma noção derivada, quase que de função puramente literária. A seca virou bonita e nos nossos deveres, a própria consciência dos nossos deveres, ficaram bonitos também. Quase existe dentro de nós uma razão importantíssima e jamais expressa:  Deixem a seca como está porque se o problema dela for resolvido, o brasileiro perde a mais bonita razão pros seus lamentos e digressões caritativas. Desconfio que nenhum brasileiro terá coragem de confessar a desumanização de origem artística causada nele pela maravilhosa literatice de Euclides da Cunha, mas, queiram ou não queiram, os fatos estão aí provando esta afirmativa urtigante...”  Retirado da fortuna crítica ao livro, O Quinze, de Rachel de Queiroz, 105 ed. p.172-173

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