domingo, 5 de fevereiro de 2017

           A literatura pode nos ajudar a reconhecer o outro, suas demandas, muitas vezes com mais sucesso do que o melhor dos libelos políticos. E mesmo que o texto literário, o romance, tenha uma intenção política, se bem escrito e com as qualidades do bom texto, então melhor será o efeito de sua mensagem.
"...Desde o começo, já se entende tudo: ele tinha um nome de homem, meu irmão, o nome de um acidente geográfico. Ele poderia tê-lo chamado de ´Catorze Hora´, como um outro chamou o seu negro de ´Sexta-Feira´. Um horário do dia, em vez de um dia da semana. Catorze Horas, seria interessante... Um árabe breve, tecnicamente fugaz, que viveu duas horas e morreu ao longo de setenta anos ininterruptos, mesmo depois de seu enterro..."
"...Como é possível matar alguém e apoderar-se dele até a sua própria morte? Quem levou uma bala no corpo foi meu irmão, não ele! Foi Moussa e não Meursault, não é? Há uma coisa que me deixa pasmo. Ninguém, mesmo depois da Independência, procurou saber o nome da vítima, seu endereço, seus antepassados, seus eventuais filhos. Ninguém. Todos ficaram de queixo caído diante daquela linguagem perfeita, que molda o ar como um diamante, e, diante da solidão do assassino, declararam solidariedade, apresentando-lhe as mais eruditas condolências. Quem poderia me dizer, hoje, o nome verdadeiro de Moussa? Quem sabe qual foi o rio que o levou ao mar que ele deveria atravessar a pé, sozinho, sem povo algum, sem nenhum cajado miraculoso? Quem sabe dizer se Moussa tinha um revólver, uma filosofia ou insolação?" O Caso Meursault, Kamel Daoud

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