quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Entrevista com Cornélio Penna

         No livro, "Teoria e Celebração" (Livraria Duas Cidades, 1976), Lêdo Ivo nos apresenta uma entrevista com Cornélio Penna. Não há indicação de data, mas de acordo com a fala de Penna, ele ainda não havia publicado "A Menina Morta", tinha escrito alguns capítulos.
           Abaixo seguem alguns trechos que selecionei da entrevista, conforme o meu interesse. Aos interessados vale a pena comprar o livro, e conferir os ensaios sobre vários escritores brasileiros e a entrevista com Penna.

Autores russos

"...Mas eu lia até duas e três horas da manhã, sempre dentro da desordem costumeira, e, aos quinze anos, quando terminei o quarto ano ginasial, fomos para São Paulo, onde, de 1914 a 1918, devia curar a Faculdade de Direito. Já então eu tinha descoberto os russos e vivia unicamente entre os heróis de Dostoiévski, de Púchkine, de Gorki, Gontcharof, Tolstoi, Leskov e tantos outros, e, ao mesmo tempo, comecei a só me vestir de preto ou de escuro. Sentia-me profundamente infeliz, e gostava muito de discutir sobre os destinos finais do homem, mas continuava certo de que era pintor." p. 109

O primeiro romance

" - Como lhe contei, meus pais foram para Itabira do Mato Dentro, e eu estive lá por um ano. Mais tarde, em 1917, fui assistir à morte de minha avó paterna, a dona do Jirau, da gigantesca jazida de ferro, da mineração do Major Paulo José de Sousa, que há século e meio a explorava, manufaturando o ferro colhido com processos considerados os mais adiantados da época, e lá estive dois meses. Depois, em 1937 e 1939, lá voltei por três ou quatro dias. Mas a vida da cidade, o espírito sombrio de seus habitantes, as histórias de impressionante força de caráter, de invencível coragem no drama que tudo lá representa, tinham ficado gravadas em meu cérebro e em meu coração de tal forma, toda minha vida, que só pude me libertar de sua obsessão escrevendo. Pedi a muitos escritores que o fizessem, que se voltassem para o tesouro que representava a alma dos itabiranos, mas não consegui interessar a nenhum deles, e assim foi que escrevi Fronteira, que consegui publicar em 1935, e que representou para mim apenas um desabafo, uma confidência, ou melhor, uma confissão pública, a compreensão de Itabira..." p.111

A vida dos escritores

"... A mim não me interessam absolutamente fatos da existência dos escritores que leio com mais frequência, e tenho por sistema não ler nunca biografias, nem, e principalmente, as autobiografias e os manifestos de orientação política ou religiosa dos romancistas. Tudo que deve persistir deles, em minha opinião, é somente sua obra de ficção. Viverá só em seus personagens. Como disse em um artigo que escrevi há muitos anos, deixemos apodrecer em paz os corpos de nossos autores." p. 112

Inquietação 

"... esse é o meu modo de ver, e não vejo mal algum em contar-lhe que, toda a minha vida, senti ao meu lado uma presença que não sabia ver nem ouvir, mas que me trazia em perpétua angústia na mais inquieta insatisfação de mim mesmo. Cada ano, cada mês, cada dia, cada hora que se passava, representava um combate minucioso de minutos que se travava no fundo de minha alma, sem que eu soubesse dizer como se chamavam as forças, em luta. Imaginava que era a lealdade, o amor à verdade, à justiça, à solidariedade humana, que se revoltavam dentro de mim, e que o primeiro vencido era eu mesmo, mas depois de muitos anos, de tão cansado, de tão vencido, comecei a compreender, e já não sou tão absurdamente infeliz como o era em mocinho, por exemplo." p. 112

A solução espiritual

" - Chegamos a uma época - disse Cornélio Penna, olhando para a janela, para lá fora - em que todos os homens devem comparecer ´voluntariamente´ perante Deus. Desse contacto sairá a salvação do mundo, porque estou convencido de que as soluções individuais é que determinarão o aparecimento das soluções gerais. Não é a humanidade que está erra, é o homem.." p. 112

O segundo romance

"- Um escritor muito lido - continuou Cornélio Penna - quando fui a Itabira em 1939, perguntou-me se ia colher material, se era o mesmo filão que ia explorar... Ri-me muito dessa idéia, e fui a Minas com esse espinho cravado em meu espírito, ainda mais que um jornal de Belo Horizonte disse que eu ia à procura de documentos humanos. Fiz um grande esforço para libertar-me do ridículo, pude viver lá momentos intensos e senti de novo toda a magia daquela gente, que representa para mim a alma livre do Brasil, poderosa e escondida na montanha. Não trouxe notas em meus cadernos de viagem, mas trouxe a vibração, o nexo espesso, surdo, das horas que vivera, e que faziam com que sentisse necessidade de escrever. E daí a publicação de Dois Romances de Nico Horta."p. 113

O material para A Menina Morta

"- Vou contar-lhe uma coisa curiosa. Curiosa para mim, bem entendido, retificou logo o entrevistado.
    E vi que estavamos parados diante de um retrato que representava uma menina, de vestido de brocado branco, estendida em seu bercinho, muito branca com uma coroa de rosas também brancas cingida na cabeça. Era uma sua tia, falecida em 1852, que tinha sido retratada, já morta, na Fazenda do Cortiço, em Porto Novo.
     - Escrevi um capítulo para o Repouso, antecipadamente, e tinha perto de mim este retrato. Quando reuni depois todos os capítulos, ele se destacou dos outros, inteiramente diferente, com outro ambiente, com outra alma. Era a fazenda de café que se fazia ouvir, com sua voz murmurejante, onde o pranto dos escravos se mistura com a alegria da riqueza dominadora em marcha. E tive que excluí-lo, e guardá-lo, mas não me foi possível conter tudo que aflorou em minha imaginação. Os velhos momentos vividos em Pindamonhangaba, o sangue materno, as recordações, os sentimentos que me tinha embalado, sobrepujados mas não vencidos pela força sobre-humana de Itabira, vieram à tona, e vou escrever outro livro, que se chamará simplesmente A Menina Morta." p.113-114

Recusa ao ambiente literário 

"- Porque não sou literato - responde-nos, rindo, Cornélio Penna - Não se pode imaginar o verdadeiro horror que tenho de viver artificialmente, de criar sem sentir um personagem, e depois ficar prisioneiro dele, e ter de tomar atitudes literárias, de viver literariamente. Não me cabe esse papel e não sei representá-lo, e fico humilhado quando me prendo a dizer coisas artísticas... Vivo apenas a minha vida, e acho tão difícil, tão complicado vivê-la, já me sinto tão cansado, só com isso, que o isolamento para mim é um refúgio e uma necessidade." p. 114

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