domingo, 27 de maio de 2012

Ironia e sedução



            Ler vários livros ao mesmo tempo, nos proporciona muitas vezes excelentes contrapontos entre autores diferentes, com uma mesma preocupação, retratar algo significativo de sua cultura. Neste texto, discutirei de forma até leviana, mas interessante, as diferentes visões da realidade brasileira apresentadas por dois gênios, Lima Barreto e Gilberto Freyre.
           
I

            A visão irônica de Lima Barreto apresenta sempre a realidade de sua época como um paradoxo, que a beleza sempre estava atrelada a um complexo de relações sempre desiguais e muitas vezes perniciosa para o homem comum; o preconceito como barreira social, que impedia o negro e o mestiço de ascenderem socialmente; e o valor ilusório do título de bacharel, que sempre foi um desejo nacional.
            Nas palavras de Lima Barreto, ao explicar a um amigo as motivações do livro, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, percebemos a perspicácia de quem bem percebia as delimitações raciais dentro da sociedade brasileira. Assim, “(...) ‘um rapaz nas condições de Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito.’(...)”.(BARRETO, 2010b, pág. 41).Um pouco mais a frente, na mesma carta, fica evidente que estas características da realidade brasileira nunca foram objeto de interesse dos nossos principais literatos, “ ‘(...) Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar a atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários.’ (...)”(BARRETO, 2010b, pág. 41).
            O preconceito racial não foi reduzido com o advento da República, a ascensão social da população negra continuou obstada pelas práticas higienistas na capital federal. O projeto de poder da República não foi capaz de abarcar a realidade social das diversas camadas sociais brasileira, principalmente de uma população que continuou a sombra das práticas escravistas. No livro, Triste fim de Policarpo Quaresma, todos estes aspectos são apresentados. A lei como armadilha, não há segurança, mas uma teia de mecanismos opressores:

“A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.” (BARRETO, 2011, pág. 242)

Nas páginas de Triste Fim de Policarpo Quaresma, principalmente no final do romance, percebemos o qual cruel e tirânico era o regime republicano. Na visão de Barreto, tal regime consolidava uma psique marcada pela violência do Estado, em favor de algumas corporações e grupos sociais.
O absurdo das práticas perpretadas pelo aparato estatal de segurança é abordado de forma bem sutil no conto, Mágoa que rala, publicado pela primeira vez em 1919. O conto sobre de uma criada alemã que foi assassinada por estrangulamento no Jardim Botânico. O conto tem no seu início uma bela descrição do Jardim Botânico e de seu idealizador, D. João VI. Quanto ao crime, interessa-nos como Barreto descreve as imperfeições da investigação policial, o apelo à violência com prisões indevidas e o uso da imprensa como instrumento de autopromoção.
Uma das poucas pistas do crime foi a descoberta de uma adaga com inscrições em espanhol, “Soy yo!”, sucede-se então uma verdadeira cruzada contra a população de origem espanhola. Na verdade não houve investigação, a prática habitual era prender para depois investigar, Barreto ironiza tais práticas.

“Ia assim o inquérito, cansando todos: delegado, escrivão, comissários, guardas, agentes, policiais de farda, “encostados”, jornalistas e o público; e já o doutor Matos, de São Sebastião de Passa Quatro, se resolvera a fechar a semana ‘espanhola’ e inaugurar a ‘germânica’ com a detenção de muitos alemães, (...)”.(BARRETO, 2010a, pág. 238)
           
A polícia salva-se com a confissão voluntária de um jovem brasileiro de que era o autor do crime. Prontamente a polícia dá publicidade ao fato de ter encontrado o autor do crime, novamente Barreto nos descreve com deliciosa ironia a prática tão comum naquela época, e podemos dizer extremamente comum nos nossos dias.
           
        “Determinou, então, o doutor Matos Garção que o metessem no xadrez; que o vigiassem muito e não deixassem conversar com ninguém. Logo que o rapaz se encaminhou para a prisão da delegacia, onde estavam os xadrezes, ordenou ao prontidão que telegrafasse ao chefe, aos auxiliares, à Associação de Imprensa, a todos os jornais, convidando todos para assistir à confissão do criminoso.” (BARRETO, 2010a, pág. 239)

            Barreto fornece vários detalhes sobre a rotina do suposto criminoso, mostrando-nos que ele não foi autor de tal crime odioso, porém o mesmo é levado a júri e como transparece na narrativa, teria sido absolvido.
            As práticas policiais chamam atenção, pouca investigação, uso da prisão arbitrária e divulgação na imprensa imputando culpa e definindo a condenação. Na visão de Barreto, tais práticas eram corriqueiras e mecanismos regulares de poder. Ora, como contraposição a Gilberto Freyre, quero destacar aqui  a presença de violência na sociedade brasileira, não só entre indivíduos, mas como prática de Estado, que utiliza a seu bel prazer os parâmetros da raça. Se no conto destaca-se o fator de ser um estrangeiro, nas crônicas, romances e demais contos, percebe-se este elemento racial como preceito comum nas práticas sociais brasileiras.



II

            Ao dar continuidade ao texto anterior, destacarei algumas entrevistas concedidas por Gilberto Freyre nos seus últimos dezessete anos de vida, entre 1970 e 1987. Estas entrevistas estão coligidas no livro, Gilberto Freyre: encontros (Azougue Editorial). Freyre mantêm com muita coerência suas posições, apresentadas nos seus diversos livros, e destaca sua visão sedutora de um Brasil tolerante e fraterno.
            É justamente esta característica cordial do brasileiro que nos parece bem diferente da visão irônica de Barreto, que percebia as contradições sociais e políticas de seu tempo, assim como a inadequação do negro ao ambiente hostil da nova realidade do mundo do trabalho.
            A morenidade é o grande elemento constituinte da sociedade brasileira, nem negra, nem branca, e sim, morena e inclusiva. Neste sentido, o movimento negro estaria calcado num falso princípio, o da negritude. Na visão de Freyre, “Pois há quem, em revistas e jornais, esteja procurando introduzir entre nós o mito da negritude, com intenções sectariamente ideológicas.” (FREYRE, 2010, pág. 109)
            Em entrevista para  O Cruzeiro, em 1970, Freyre defende o pressuposto de que não há racismo no Brasil, apenas situações esporádicas de preconceito de raça e cor. A morenidade constituinte da sociedade brasileira impediria a institucionalização do racismo como em outros países.
                                  
“[...] Passamos todos a ser morenos: mais ou menos morenos. Inclusive os brancos amorenados pelo sol tropical. Sabemos que agora é motivo de orgulho, no Brasil, o amorenamento da pele pelo sol das praias.[...] Creio que, a despeito de preconceitos de raça e de cor, quase sempre ligados aos de classe, o Brasil se aproxima cada dia mais do seu natural destino de tornar-se a primeira grande democracia racial no mundo. Um grande destino.” (FREYRE, 2010, pág. 119)


            Freyre reafirma a validade de uma reatualização da idéia de miscigenação como remédio social, a democracia racial brasileira se consolida a medida que todos se amorenam. A cordialidade inerente no brasileiro se reforça com a morenidade, o brasileiro é incapaz de atitudes violentas e por conseqüência do racismo violento como em outras partes do mundo.

“[...] creio que a cordialidade brasileira continua a existir. Os próprios seqüestros entre nós se apresentam com uma diminuída violência se formos comparar os assaltos, seqüestros, o terrorismo noutros países, inclusive na democracia dos Estados Unidos. Há entre nós como que uma tendência para atenuar a violência, que continua a se fazer sentir.[...]” (FREYRE, 2010, págs. 129-130)

            Ao recorrer a idéia de morenidade, Freyre caminha no sentido de reafirmar a nossa cordialidade e por tabela anular qualquer crítica que afirme o racismo como prática corriqueira em nossas relações sociais. “Nós hesitamos muito em sermos indelicados chamando preto de preto e já o chamamos de moreno. Ora, nesse fenômeno semântico me parece que está uma indicação de que nós caminhamos no Brasil para uma vasta morenidade[...]” (FREYRE, 2010, págs. 130-131)
           
            No final da década de 1970, Freyre concede entrevista ao jornal Estado de São Paulo, ele reafirma o papel mitigador da miscigenação em relação ao racismo, assim como a difícil definição do mesmo, pois estaria entremeado com os preconceitos de classe e região típicos no Brasil. (FREYRE, 2010, pág. 169) Nesta entrevista Freyre faz uma ampla defesa da monarquia e do patriarcado escravista, pois na sua interpretação o escravo e negro liberto tinham um melhor tratamento, dado pelos senhores escravistas, que possuíam um senso de responsabilidade. A nostalgia do passado torna-se evidente quando o nosso entrevistado desanca o empresariado republicano e a incompetência da República em incluir o negro.

“Os empresários industriais, que constituíram a nova elite econômica do Brasil, não tinham o senso de responsabilidade que é característico das boas elites, como foi, de certo modo, a elite agrária patriarcal no nosso país. A empresarial era uma elite de novos ricos ou recém-chegados ao poder econômico. Não prepararam os ex-escravos para os trabalhos nas novas indústrias urbanas, quase todas urbanas. [...]” (FREYRE, 2010, pág. 170)

            Apresentar o projeto republicano como falido em termos de integração do negro na sociedade é um consenso entre os historiadores, mas vangloriar o tratamento recebido pelos negros escravos durante a monarquia e glorificar o senso de responsabilidade do senhor de engenho e barões do café, já se torna um evidente engodo ou falácia interpretativa.
            Destaca-se nestas entrevistas de Freyre uma necessidade de justificar a tese da democracia racial sempre nos termos de uma glorificação do passado, que não percebe o conflito como questão constituinte de nossa sociedade, e as sentenças são sempre no sentido de reafirmar qualidades cordiais do brasileiro, mesmo que seja necessário o falseamento da realidade. Freyre nos dá a entender, exercendo aqui o papel de interprete de suas falas, que a ditadura não teria usado métodos violentos e que o nosso destino seria uma transição calma e tranqüila rumo a um modelo de democracia racial universal.
            Entrevistas são dadas em situações atípicas, pecam pela falta de rigor, além do tom informal, porém são evidencias de que Freyre continuou coerente em relação a sua visão da sociedade brasileira. A sedução de suas idéias se apresenta a nós sempre renovada. Pois a eliminação do conflito, a idéia de uma sociedade pacificada tem grande utilidade para a manutenção da ordem.
            Lima Barreto ao ironizar a sociedade de sua época captou muito bem as mazelas que o negro enfrentava e que se consolidaram nas nossas práticas sociais, a impossibilidade de ascensão social, o preconceito racial como barreira educacional, assim como assimilação da violência pelo aparato estatal policial, onde a racionalidade cede lugar a violência e a tipificação criminal em função da raça. Não há cordialidade, há violência constantemente reatualizada. 

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a.
__________. Recordações do escrivão Isaías Caminha.São Paulo: Penguin Classics Companhia das letras, 2010b.
__________. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin, 2011.
FREYRE, Gilberto. Gilberto Freyre, encontros. Org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

Um comentário:

Allysson Garcia disse...

Valney, muito boa a sua análise e nos ajuda a entender melhor o pensamento de dois importantes pensadores desse nosso Brasil. Se a defesa da negritude era ideológica, o que dizer da defesa da mestiçagem? Realmente Freyre é coerente, porém, a defesa da mestiçagem procura obscurecer todas ações e ideias que questionam a sua ideologia.
Talvez, em certos aspectos Freyre não esteja incorreto em dizer que a vida dos negros nos fins do Império fossem melhores do que na República. George Reid Andres em América Afro-latina afirma que a houve emergência de uma classe média negra no Brasil, assim como em Cuba e em Porto Rico no século XIX, porém, no Brasil especificamente houve um recrudescimento e aumento das barreiras raciais com os governos oligárquicos.
Quando foi chamado a contribuir com o Jornal Quilombo, publicado por Abdias do Nascimento, reconhecia a negritude e a cultura negra como algo presente no Caribe e nos EUA, mas que havia perdido força no Brasil, ainda assim disse:
"O comportamento dos brasileiros deve ser o de brasileiros, embora cada um possa e até deva conservar de sua cultura ou 'raça' materna valores que possam ser úteis, ao todo: à cultura mestiça, plural e complexa do Brasil. Inclusive os valores africanos." (In: GUIMARÃEs, Antonio S. Alfredo. Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de SP e RJ, 1925-1950. Afro-Ásia, 29/30, 2003, 247-269.)