domingo, 19 de maio de 2013

Lúcio Cardoso por Clarice Lipector

                Clarice Lispector tem trechos citados a atacado, entretanto isto não faz de sua obra menos importante, ou sem qualidade, já que hoje, os excessos de exposição combinam com falta de conteúdo. Talvez, muitos citem-na sem compreender a complexidade e sutileza da sua visão sobre as relações humanas. Outro autor, enigmático e genial, foi Lúcio Cardoso, pelo qual Clarice Lispector nutria profundo respeito, muito mais que respeito, uma profunda identidade, ambos deslocados no mundo. Ambos com uma percepção para o humano, diferente das dos demais, únicos em desvendar os mistérios da intimidade.
                 Em homenagem a Lúcio Cardoso, reproduzo aqui o "epitáfio" escrito por Clarice Lispector após a morte do autor. Não diria um epitáfio, mas uma declaração de amor, de tristeza por perder aquele que mais próximo dela sentia as dores do mundo, da intimidade.

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LÚCIO CARDOSO*

Clarice Lispector

Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope.
               Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
               A primeira quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você que era a vida. Não morreu de doença. Continuou vivendo, porém era homem que não escrevia mais, ele que até então escrevera por uma compulsão eterna gloriosa. E depois da doença, não falava mais, ele que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mão esquerda para pintar: o poder criativo nele não cessara.
             Mudo ou grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de um brilho intenso,  fascinante e um pouco diabólico.
             De sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mão esquerda (que, no entanto, era incapaz de escrever, só de pintar) transparências e luzes e levezas que antes ele não parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das trevas da doença.
            A segunda saudade foi já perto do fim.
           Algumas pessoas amigas dele estavam na ante-sala de seu quarto no hospital e a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado de coma.
            Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
           Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em ´mineira´: ganhei o diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.
           Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a morte.
            Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ele me ensinou o que é ter chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Míriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos braços do outro.
         Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de ´vida apaixonante´. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado.
sobre Lúcio? Você contaria de seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou.
           Enquanto escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava  com em cravo a Pour Élise. Tanto ouvi, que a mola partiu. A caixinha de música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.

* Retirado de a "Crônica da Casa Assassinada", Edição Crítica, ALLCA XX.

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